Opinião

Usar ou não o fundo eleitoral para o combate ao coronavírus

Autores

  • Soraia Mendes

    é doutora em Direito Estado e Constituição pós-doutora em teorias jurídicas contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestra em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com atuação e obras reconhecidas no Supremo Tribunal Federal e na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

  • Marcus Firmino Santiago

    é pós-doutor em Direito Estado e Sociedade (UnB) doutor em Direito do Estado (UGF) mestre em Direito Público (Unesa) professor de Direito Constitucional Direitos Humanos e Teoria do Estado e advogado.

31 de março de 2020, 15h28

Na política um dos mais antigos dilemas está entre o “gastar” e o “não gastar” como ponto nodal de sustentabilidade no poder. De fato, guardadas, por óbvio, as devidas proporções em relação à complexidade do funcionamento do sistema capitalista nos dias de hoje, até mesmo Maquiavel (séc. XVI) preocupou-se com essa questão ao defender que, entre a “liberalidade” e a “parcimônia”, o governante com aguçada capacidade de análise da conjuntura política (virtù) deveria sempre optar pela última.

Ou seja, ser contido nos gastos para posteriormente poder bem utilizar dos recursos quando necessário é uma lição política secular. Uma lição, infelizmente, não aprendida em nosso país e que agora é escancarada pela crise econômica, social e política provocada pela Covid-19.

O quadro caótico instaurado com o alastramento do coronavírus pelo mundo trouxe, na exata razão da urgência de que ações sejam adotadas para o socorro econômico principalmente aos mais pobres, um falso dilema entre economia e saúde pública. Um falso dilema, desde nossa ótica, na medida em que não há salvação econômica sem a garantia de assistência e seguridade em um tempo de colapso na saúde pública. Felizmente, em escala planetária essa é a linha de atuação que vêm sendo defendida por inúmeros especialistas na área, e é o que vêm adotando países desenvolvidos.

Pois bem, no Brasil, como sói acontecer, temos cá jabuticabas com as quais precisamos lidar. E uma delas é possibilidade de utilização dos recursos do fundo eleitoral para fins de combate à pandemia.

A proposta tem sido defendida por algumas vozes no parlamento federal, levantada como bandeira por alguns grupos na sociedade, e agora ganhou cores ainda mais escuras com a intervenção do Poder Judiciário consolidada na decisão liminar proferida pela 26ª Vara Federal do RJ. Nos termos do pronunciamento judicial foi determinado que o presidente da República e o presidente do Congresso Nacional decidam em 96 horas se os recursos destinados ao FEFC — Fundo Especial de Financiamento de Campanha serão usados para medidas de combate ao coronavírus.

O prazo expira nesta terça-feira (31/3) e, após seu transcurso, a consequência será o poder autoconferido pelo próprio juízo para determinar diretamente a medida.

Trata-se de uma decisão que não pode prosperar em instancias superiores do judiciário (ao menos assim se espera). E seria possível elencar aqui vários argumentos de ordem técnico-jurídica justificadores dos motivos pelos quais a decisão judicial merece ser atacada desde seus aspectos mais básicos. Contudo, é preciso dar luz a algo ainda maior: o desprezo subliminar (ou nem tanto…) à democracia representativa.

O volume de reais expresso no montante a ser destinado à campanha eleitoral é, à primeira vista, realmente assustador em um momento que cada centavo vale um milhão para salvar vidas. Por outro lado, o debate a respeito da utilização destes recursos nos coloca diante de um novo e perigoso falso dilema, agora entre saúde pública e democracia.

É enganosa a narrativa segundo a qual o fundo eleitoral representa a concessão de privilégios à classe política. Na verdade, a construção de um discurso nesta linha, seja em tempos de guerras ou de crises de saúde como a que vivemos, é o gatilho para um perigoso mecanismo de deslegitimação democrática.

Eleições por si só não representam a totalidade do que se pode entender por democracia. É certo que o simples ato de votar e ser votado não é o suficiente para saciar nossa fome de justiça, igualdade e participação. Contudo, por mais combalida que esteja, a democracia representativa é um caminho do qual não se pode prescindir.

É duro, mas é preciso ser dito: democracia custa. E custa dinheiro. E isso tem razão de ser.

Ao contrário do que muitas vezes é alardeado o financiamento público é uma salvaguarda para a democracia, pois é flagrante e comprovado o risco de colonização do processo eleitoral por grandes financiadores que pós-eleição cobram em apoio no parlamento o dinheiro que “investiram” em algumas candidaturas.

A superação deste quadro, vivido de maneira intensa no Brasil durante as últimas décadas, deu-se a duras penas. Daí porque a importância de que nenhum passo atrás seja dado no sentido de regressar ao modelo anteriormente vigente em cuja origem estão inúmeros desvios que a privatização da esfera pública parlamentar possibilita.

Canalizar recursos orçamentários para o fundo eleitoral ainda que possa a alguns soar como um desperdício é, na verdade, uma garantia para toda a sociedade. Por outro lado, admitir seu esvaziamento, sublinhe-se, com ou sem o adiamento do pleito deste ano para 2022 (tema cujo conteúdo constitucional e político trataremos com vagar em outro artigo) é uma base argumentativa de ordem jurídico-política, no mínimo, temerária.

Não há salvação para a economia fora do investimento na saúde pública. Mas também não há possibilidade de que saíamos desta crise com o firme propósito de construção de uma sociedade livre, justa e solidária como preceitua nossa Constituição, fora da democracia. E a garantia do fundo eleitoral é parte disso.

Neste momento, em que discursos de variadas vertentes buscando a destinação do fundo eleitoral para o combate à pandemia ambicionam ganhar corpo, é de se esperar do parlamento, para usar os termos de Maquiavel neste aspecto, “parcimônia”, pois o custo democrático da desconstituição da importância dos recursos públicos de campanha poderá enviar em breve uma alta fatura. E nessa fatura o preço poderá ser a democracia.

Autores

  • é advogada, mestre em Ciências Políticas pela UFRGS, doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB, pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela UFRJ.

  • é advogado, mestre em Direito Público pela Unesa, doutor em Direito do Estado pela UGF, pós-doutor em Direito, Estado e Constituição pela UnB.

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