Opinião

Calamidade pública justifica novo empréstimo compulsório?

Autor

  • Evandro Azevedo Neto

    é sócio do Viana e Azevedo Advogados mestre e especialista em Direito Tributário e Financeiro pela Universidade de São Paulo professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário e professor convidado da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

26 de março de 2020, 6h02

Crise à vista, o questionamento surge: diante do estado excepcional que vivemos decorrente da pandemia causada pelo novo Coronavírus (Covid-19), caso a União perca a capacidade econômica de enfrentar os efeitos do vírus no aspecto da saúde pública, segurança, estrutura e demais setores importantes à sociedade, caberia a instituição de empréstimo compulsório?

Em que pese nos parecer improvável o aumento da carga tributária no momento experimentado no país, o estado de insegurança permanece nos diversos setores da sociedade, o que justifica, assim, um posicionamento sobre o tema.

O empréstimo compulsório é espécie tributária prevista no artigo 148 da Constituição Federal e possui como característica o aspecto de excepcionalidade. De fato, na forma da lei, ou bem este tributo se justifica (i) pela necessidade de despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, ou (ii) no caso de necessidade de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional.

Note-se que a redundância do vocábulo “necessidade” denotado acima não é um erro, mas exercício de constatação.

A “necessidade” é a própria causa da instituição dessa espécie tributária: é dizer, antes de haver “despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública”, a tributação por meio de empréstimo compulsório precisa ser “necessária”, sob pena de desvirtuar a própria natureza da sua instituição, tal como leciona Luís Eduardo Schoueri[1].

Bom que se entenda que a “necessidade”, portanto, estará intrinsecamente vinculada à saúde financeira da União, notadamente no aspecto orçamentário, para que, após, desde que existentes os requisitos nos incisos do artigo 148 da Constituição, se realize a sua instituição.

Assim, uma primeira pergunta se faz pertinente para se abordar o tema: a referida instituição tributária, no momento em que vivemos, seria necessária?

A pergunta está entrelaçada com o cenário financeiro vivido pelo país. O orçamento da União Federal foi aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro de 2019, e gerou a Lei 13.978/2020[2], que, nos termos do seu artigo 1º, “(…) estima a receita da União para o exercício financeiro de 2020 no montante de R$ 3.686.942.055.917,00 (…) e fixa a despesa em igual valor (…)”.

O referido valor comporta a verba destinada à saúde e contempla, ainda, a possibilidade de se instituir a abertura de crédito suplementar, caso os valores estabelecidos não sejam suficientes ao atendimento das necessidades da população e desde que observados os termos da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Entretanto, o Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo 6/20, no seu artigo 1º reconheceu o estado de calamidade pública em função do coronavírus (Covid-19), que assola o país no início do corrente ano de 2020, consoante é possível se observar do artigo 1º[3].

Referido Decreto Legislativo decorre do Projeto de Decreto Legislativo 88/2020, que, na sua exposição de motivos, estabelece:

(…) Extrair-se, portanto, que a emergência do surto do COVID-19 como calamidade pública gerará efeitos na economia nacional, com arrefecimento da trajetória de recuperação econômica que vinha se construindo e consequente diminuição significativa da arrecadação do Governo Federal. Vale ressaltar que, neste momento o Brasil está entrando na crise, e ainda que ela já esteja presente em outros países, a incerteza envolvida no seu dimensionamento, em nível global e nacional, inviabiliza o estabelecimento de parâmetros seguros, sobre os quais os referenciais de resultado fiscal poderiam ser adotados. (…)[4]

Como se vê, foram afastados mecanismos de contingenciamento de despesas, que se justificam, dentre outros, pelo temor da ausência de recursos financeiros suficientes capazes de sustentar as dívidas da União, em especial com a saúde. No referido excerto, destaca-se a palavra “incerteza”.

Poder-se-ia, então, ser reconhecida a existência de calamidade pública pelo receio de as receitas públicas não serem suficientes ao cumprimento das metas com saúde ou haveria que existir dados concretos informadores da insuficiência?

Parece-nos que sim, eis que o reconhecimento da calamidade pública, não decorre, necessariamente, da ausência de saúde financeira, mas, por outro lado, existe na necessidade de direcionamento dos esforços do poder público para o enfrentamento daquela determinada situação, tal como previsto nos artigos 1º e 2º, IV, do Decreto 7.257/2010[5]. [6]

Ocorre que não foi a necessidade de direcionamento de esforços, sozinha, o fundamento para o reconhecimento da existência da calamidade pública. De fato, tal como descrito na exposição de motivos que originou o Decreto Legislativo 6/20, tem-se que a principal justificativa para o reconhecimento da calamidade pública é a possível ausência de recursos para fazer frente à pandemia que o Brasil enfrenta.

A título de exemplo, consta na referida exposição de motivos que já houve a abertura de crédito extraordinário no valor de R$ 5.099.795.979,00[7], valor este realocado do Apoio à Infraestrutura para a Educação Básica e Incremento Temporário ao Custeio dos Serviços de Assistência Hospitalar e Ambulatorial para Cumprimento de Metas (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e Fundo Nacional de Saúde) para ser utilizado no programa de Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional Decorrente do Coronavírus (Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, Fundação Oswaldo Cruz e Fundo Nacional de Saúde).

Para a implementação do empréstimo compulsório, tributo afeto à competência tributária da União Federal, há que existir despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública ou a necessidade de investimento público de caráter urgente e de interesse nacional. Tais regras, como se disse, estão descritas no artigo 148, I e II, da Constituição Federal[8].

Pois bem, diante do cenário vigente, há tanto o requisito de “despesas extraordinárias” como o “estado de calamidade pública”, que justificam a instituição do empréstimo compulsório, na forma do artigo 148, I, da Constituição Federal.

E mais: tratando-se este tributo de exceção expressa ao princípio da anterioridade (anual e nonagesimal), tem-se que este poderia ser prontamente instituído, o que, no caso extremo, ensejaria, ainda, o aumento da carga tributária da sociedade somado às medidas sociais restritivas enfrentadas até o presente momento, impactando fortemente o mercado brasileiro. Os efeitos seriam nefastos.

Não se pode perder de vista, entretanto, que tal tributo apenas poderia ser instituído por lei complementar, o que implicaria, assim, o tempo de tramitação regular no Congresso Nacional, mas de imposição imediata.

No presente caso, o empréstimo compulsório, se instituído, teria caráter plenamente vinculado: aplicável à toda sociedade e no interesse, repita-se, de toda a sociedade, devendo ser aplicados em tantos setores quantos necessitarem de recursos para evitar a pandemia e seus efeitos.

Contudo, apesar de os requisitos constitucionais explícitos estarem preenchidos, é de nossa opinião que o empréstimo compulsório apenas poderia ser instituído se comprovadamente “necessário”.

Isso porque, como se disse, o reconhecimento da calamidade pública pelo Congresso Nacional se deu no contexto de “expectativas” e “incertezas”. De sorte que não há qualquer dado concreto público que sustente, neste momento, a ausência de recursos para o enfrentamento da crise.

Assim, a situação atual não permite, a princípio, a instituição de nova carga tributária por meio de empréstimo compulsório diante da evidente ausência de necessidade de tal recurso. Apenas com a sua comprovação, por meio de exercício amplo de publicidade à sociedade, é que poder-se-ia justificar tal medida.

Em havendo tal comprovação de necessidade, ter-se-ia, a nosso ver, existentes os requisitos para tal tributação na forma do artigo 148, I, da Constituição.

Ocorre que o empréstimo compulsório, sendo espécie tributária, deve observar os demais princípios constitucionais tributários, e, dentre eles, o princípio da capacidade contributiva, na forma do artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição, e da capacidade receptiva dos cidadãos, corolário do orçamento republicano descrito na obra Orçamento Republicano e Liberdade Igual, de Fernando Facury Scaff[9].

Não se pode perder de vista que a crise causada pela pandemia afetou a economia mundial, o que, sem dúvida, ataca a maioria dos trabalhadores brasileiros e suas famílias, de sorte que, a par do cabimento do referido tributo, não nos parece que se acomodaria ao princípio da capacidade contributiva, além do fato de que tal medida comportaria forte e justificada resistência social.

A solução, a nossa ver, tem que ser equilibrada. O impacto econômico é evidente e irrefutável; quanto a isso, não se discute. Nesse sentido, os estímulos econômicos urgem que sejam aplicados e direcionados no sentido de retomar a economia de sorte que a integralidade dos agentes de mercado tenham meios de produzir e circular a riqueza.

O aumento de carga tributária não é o caminho, e — bom que se diga — nem o simples diferimento do pagamento do tributo, que apenas deslocaria para frente o problema, tal como estabelecido na Resolução 152/2020, que apenas postergou — sem qualquer redução de carga — o pagamento do Simples Nacional, que é “forma tributária” incidente sobre a imensa maioria do setor empresarial do país, de forma que estas empresas, neste caso, teriam que enfrentar o recolhimento do tributo antes que o setor tenha condições de se reestruturar economicamente. Não parece razoável.

E nem se diga que a restituição do tributo seria medida de alento, eis que os recursos são necessários hoje. Não amanhã.

Assim, em conclusão, consideramos manifestamente incabível a instituição de empréstimo compulsório na atual conjuntura, eis que não apenas não há insuficiência de recursos comprovada publicamente — o que denota a ausência da necessidade da medida —, como, ainda, tratar-se-ia de grave afronta ao princípio da capacidade contributiva, tendo em vista o poder de impactar substancialmente a capacidade dos contribuintes em superar a dificuldade financeira que se experimenta, e, assim, da sua subsistência.

Há firme e abundante registro na memória brasileira dos efeitos nefastos da Medida Provisória 168/90, convertida na Lei 8.024/90: polêmica medida do governo Collor, que determinou o bloqueio da poupança popular dos valores superiores a 50.000,00 cruzados depositados nas cadernetas de poupança, que teve, a nosso ver, claro efeito confiscatório dos rendimentos dos contribuintes brasileiros.

Nessa linha, oportuna a célebre frase de Edmund Burke (1729-1797), pensador irlandês, filósofo e advogado, que declarou: “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”. Lembremos da nossa história.

Aguardemos os próximos passos, que, espera-se, trilhem o caminho do retorno da normalidade econômica à sociedade brasileira.

[1] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014. P. 212.

[2] < http://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-13.978-de-17-de-janeiro-de-2020-238773215>. Acesso em 23/03/2020.

[3] Art. 1º Fica reconhecida, exclusivamente para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.

[4] < https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8075962&ts=1584735519949&disposition=inline> . Acesso em 23/03/2020.

[5] < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7257.htm#art17>. Acesso em 23/03/2020.

[6] Art. 1º O Poder Executivo federal apoiará, de forma complementar, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios em situação de emergência ou estado de calamidade pública, provocados por desastres.

Art. 2º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

(…)

IV – estado de calamidade pública: situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido;

[7] < https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8075962&ts=1584735519949&disposition=inline> . Acesso em 23/03/2020.

[8] < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 23/03/2020.

[9] SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual. Ensaio sobre Direito Financeiro, República e Direitos Fundamentais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018. P. 278.

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  • é sócio do Viana e Azevedo Advogados, mestre e especialista em Direito Tributário e Financeiro pela Universidade de São Paulo, professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário e professor convidado da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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