Opinião

Nova discussão no STJ sobre ônus da prova ambiental

Autores

11 de março de 2020, 6h31

Na pretensão de pacificar uma discussão que deve ser avaliada por diversas óticas, no final de 2018 o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 618[1], fixando o entendimento de que a inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental.

No último dia 20 de fevereiro de 2020, o ministro Francisco Falcão suscitou nova controvérsia à 1ª Seção do STJ exatamente sobre a inversão do ônus em ações de degradação ambiental(tema 155), uma vez que, apesar da súmula, há na base de julgados do STJ, aproximadamente, 36 acórdãos e 1.085 decisões monocráticas sobre a temática, de diferentes estados da federação.

Diante da redação genérica da Súmula, muitas dúvidas surgiram, especialmente sobre o que abarcaria o conceito de “ações de degradação ambiental”. O que será tratado aqui é que, na prática, a aplicação da súmula tem gerado inversão da carga probatória de forma indiscriminada, tanto em ações coletivas que buscam reparação por dano ambiental (tutela de direitos difusos e coletivos, via ações civis públicas ou ações populares) como também em ações individuais de natureza indenizatória por alegação de dano ambiental.

Conforme já bem observado pela doutrina especializada[2], o STJ, infelizmente, não fez qualquer diferenciação entre a natureza dos tipos de ação, quando se busca a reparação do meio ambiente prejudicado ou de interesses individuais.

Entre os 12 precedentes que fundamentaram a Súmula, 11 eram ações civis públicas que, nem sempre, estavam limitadas à tutela do meio ambiente. Havia confusão com pleitos individuais na mesma ação, sem a necessária observância aos requisitos do Código de Processo Civil, que prevê a vedação da inversão nos casos em que possa tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito (artigo 373 parágrafos 1º e 3º, II, do CPC)[3].

Se o STJ continuar com o mesmo entendimento, sem adotar a premissa de que pode aplicar a inversão do ônus da prova, mas delimitada ao dano ambiental, corre-se o risco de ser replicado pelos tribunais de forma equivocada em demandas individuais, em que o próprio autor deve comprovar sua legitimidade e o prejuízo que sofreu, sob pena de impor ao réu a produção de prova diabólica[4].

Com a nova controvérsia suscitada, após o pronunciamento definitivo do STJ, via de regra, não será mais possível acessar a corte contra as ações dos tribunais inferiores. Isso porque, após o julgado de repetitivos, os presidentes e vice-presidentes dos tribunais de origem, responsáveis pelo juízo de admissibilidade do recurso especial, poderão negar-lhes seguimento se tratarem da mesma questão, ensejando o cabimento do agravo interno para o próprio tribunal, e não mais do agravo em recurso especial (artigo 1.030, parágrafo 2º, do CPC[5]).

Trata-se de um engessamento que pode causar diversos problemas práticos e ofensa direta ao CPC[6], com a inversão do ônus em qualquer ação que envolva dano ambiental, mesmo nas ações indenizatórias individuais.

Infelizmente, o que se verifica é que, de pronto, essa diferenciação também não foi enfrentada na discussão que suscitou o Tema 155, uma vez que a própria controvérsia já nasceu com ações de natureza distintas: uma ACP e uma ação individual (REsp 1.847.562 e 1.852.436).

O primeiro caso representativo (REsp 1.852.436[7]) trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Paraná contra empresa siderúrgica, sob alegação de dano ambiental por contaminação do solo decorrente de disposição de resíduos tóxicos a céu aberto em local não impermeabilizado. Em decisão de primeira instância, o juízo da comarca de São José dos Pinhais inverteu o ônus da prova, imputando à empresa o encargo de provar que as práticas não foram lesivas ou não ocorreram. A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Paraná, com fundamento no princípio da precaução, na natureza objetiva da responsabilidade civil ambiental e na aplicação subsidiária do Código de Defesa do Consumidor.

O segundo caso (REsp 1.847.562[8]), que confirma novamente a confusão, trata-se de ação individual de indenização por dano ambiental movida por moradores de Porto Velho (RO) contra concessionária de energia, sob alegação de que a construção de reservatório para geração hidrelétrica ocasionou danos às suas residências, decorrente de um trágico aumento do nível do Rio Madeira em fevereiro de 2014. A decisão recorrida inverteu o ônus da prova com recolhimento dos honorários periciais pela concessionária, diante de “reconhecida hipossuficiência dos autores e da notória capacidade financeira da demandada”.

Nesse contexto, o que se espera é que o STJ faça uma linha de corte sobre a possibilidade de incidência da inversão apenas sobre o dano ambiental em si, de forma que ações de natureza distinta entre si (ação coletiva e individual) sejam avaliadas com base na distribuição de encargos probatórios com tratamento diferenciado também.

Ora, quando se fala em ação individual por dano ambiental, a premissa insuperável que deve ser provada pelos autores é a sua legitimidade e o próprio prejuízo sofrido de forma particularizada. É comprovar se sua propriedade, atividade produtiva, bens e/ou fonte de renda foram prejudicados pelo dano ambiental que se alega. Nesse ponto, reitera-se: inverter para o réu esse encargo é permitir a ocorrência de prova diabólica, da qual o demandado nunca terá condições de se desincumbir.

Em qualquer hipótese, é bom lembrar que caso a diferenciação não seja devidamente enfrentada pela corte, jamais poderá ser desconsiderada pelos tribunais inferiores, especialmente ao avaliar as particularidades do caso concreto e a legitimidade ativa dos demandantes em ações de natureza indenizatória individual, sob pena de se aplicar injustiça na busca pela justiça.

[1] STJ. Súmula 618, Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp?livre=(sumula%20adj1%20%27618%27).sub.

[2] BILHALVA. Margareth Michels. Inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental e questões práticas forenses de demandas ambientais. In Súmulas do STJ em Matéria Ambiental Comentadas: um olhar contemporâneo do direito ambiental no judiciário. Coordenadoras: GIL, Luciana. JACCOUD. Cristiane. MORAIS. Roberta Jardim. Editora Thoth, 2019.

[3] A jurisprudência entre tribunais inferiores não está pacificada. No âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, o entendimento majoritário das Câmaras Especializadas em relação às ações de pescadores alegando prejuízos individuais por alegação de dano ambiental é que é dos autores o encargo de provar danos extrapatrimoniais e lucros cessantes, notadamente que exerciam a atividade pesqueira, os valores que eventualmente deixaram de perceber em razão do dano e o suposto declínio de rendimentos (Exemplos: TJ-SP, 11ª Câmara de Direito Público, AC 0101631-58.2004.8.26.0515, desembargador relator Ricardo Dip, j. 10/10/2011 e TJ-SP, Apelação Com Revisão 0164605-85.2008.8.26.0000, desembargador relator Samuel Júnior, j. 17/12/2008, TJ-SP, 4ª Câmara de Direito Privado, AC 1006589-95.2016.8.26.0562, desembargador relator Natan Zelinschi de Arruda, j. 08/06/2017 e TJ-SP, 8ª Câmara de Direito Privado, AC 1038969-74.2016.8.26.0562, desembargadora relatora Clara Maria Araújo Xavier, j. 04/10/2017)

[4] A prova diabólica é aquela que é impossível, senão muito difícil de ser produzida. Um bom exemplo de prova diabólica é a do autor da ação de usucapião especial, que teria de fazer prova do fato de não ser proprietário de nenhum outro imóvel (pressuposto para essa espécie de usucapião). É prova impossível de ser feita, pois o autor teria de juntar certidões negativas de todos os cartórios de registro de imóvel do mundo. A jurisprudência usa a expressão prova diabólica, outrossim, para designar a prova de algo que não ocorreu, ou seja, a prova de fato negativo. (…) Quando se está diante de uma prova diabólica deste viés, insusceptível de ser produzida por aquele que deveria fazê-lo, de acordo com a lei, mas apta a ser realizada por outro, o ônus probatório deverá ser redistribuído dinamicamente, caso a caso. (DIDIER JR. Fredie, BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil volume 2, 8ª edição, p.99, g.n.).

[5] Art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá: I – negar seguimento: […] b) a recurso extraordinário ou a recurso especial interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos; […] § 2º Da decisão proferida com fundamento nos incisos I e III caberá agravo interno, nos termos do art. 1.021.

[6] Nos termos do CPC, cabe ao autor a comprovação do fato constitutivo do seu direito, de forma que a distribuição do ônus da prova é exceção e somente cabível nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, devendo o juiz fazê-la por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. (art. 373 º1º)

[7] BRASIL. STJ. REsp 1.852.436. 2ª Turma. relator ministro Francisco Falcão.

[8] BRASIL. STJ. REsp 1.847.562. 2ª Turma. relator ministro Francisco Falcão.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!