Opinião

Advocacia criminal na sombra do vale da morte

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27 de maio de 2020, 7h54

Spacca
Atualmente metade dos 50 Estados Federados norte-americanos e o sistema de administração da justiça federal adotam a pena de morte, malgrado nos últimos anos sua aplicação quantitativa tenha declinado e se concentrado geograficamente em 5 Estados (Texas, Tennessee, Alabama, Flórida e Geórgia). 1

No caso Gregg v. Georgia 2, a Suprema Corte entendeu que a persecução da pena capital deve ser estruturada com base em modelo procedimental bifurcado, que perdura até hoje.

Nesse modelo, há uma primeira etapa na qual os jurados decidem se o acusado é culpado ou inocente. Em havendo condenação, há etapa subsequente obrigatória, em que os jurados decidem sobre a pena a ser aplicada (letal, perpétua, ou por tempo determinado, com ou sem livramento condicional), com base na gravidade do crime e características do condenado. Nessa segunda etapa, cabe à defesa técnica do condenado o ônus de produzir prova de mitigação (mitigating evidence) da pena (v.g. alcoolismo, alterações mentais, dependência química de substâncias entorpecentes, histórico de abuso sexual etc.), que justifique aplicação de pena não fatal.

Os defensores capitais (capital defenders) formam uma comunidade profissional especializada com sua própria cultura jurídica, diferenciada dos defensores criminais em geral. 3

Ademais das habilidades exigíveis de quaisquer criminalistas, os defensores capitais devem desenvolver duas habilidades adicionais: (i) tolerância às limitações de clientes no trato interpessoal, pois muitos têm alterações mentais, desconfianças, traumas etc.; (ii) interesse e tempo para investir no mínimo de 50 a 100 horas na criação de relação Advogado-cliente que seja produtiva. 4

Ao atuar nos casos penais em que a aposta é altíssima (questão literalmente de vida ou morte), tais defensores têm enorme grau de responsabilidade profissional, pois sua imperícia ou negligência – em investigar cuidadosamente os fatos naturalísticos imputados e o histórico pessoal do acusado, opor exceções processuais, suscitar questões preliminares e teses de mérito etc. – tem efeito drástico e irreversível: a execução do cliente pelo Estado.

Assim, há critérios mais rigorosos para aferição da efetividade da defesa técnica dos acusados susceptíveis à pena capital. Em 1989, a American Bar Association (ABA) publicou suas Diretrizes para nomeação e performance de advogados de defesa em casos de pena de morte. 5

Tratam-se de diretrizes cujo objetivo é estabelecer um padrão nacional para a defesa técnica nos casos de pena letal, assegurando a alta qualidade da representação dos acusados susceptíveis à essa pena. Sua aplicabilidade se estende desde o momento em que o cliente é preso até os procedimentos pós condenação. As diretrizes em apreço foram incorporadas a várias legislações estaduais, e são usadas pelos Tribunais como parâmetro durante o julgamento de nulidades processuais decorrentes de defesa técnica deficiente.

Limitações de espaço e tempo impedem uma análise detalhista e individualizada dessas diretrizes, motivo pelo qual ora serão expostos seus pontos mais importantes.

O primeiro é a nomeação dos Advogados, feita por agência com expertise em defesa capital e que seja independente do Poder Judiciário, de acordo com plano de representação legal aprovado por cada jurisdição. A função desse plano é assegurar a independência dos Advogados nomeados e condições materiais de efetividade da defesa técnica do acusado. 6

Tal plano deve prever equipe de defesa composta por no mínimo 2 Advogados. Estes devem ter as seguintes qualificações: (i) habilitação legal naquela jurisdição; (ii) comprometimento com representação de alta qualidade em casos de pena fatal; (iii) educação continuada em defesa capital, via treinamentos periódicos e aprovados pela precitada agência independente; (iv) conhecimento substancial da legislação (material e processual) aplicável; (v) habilidade em litigância e negociações complexas; (vi) habilidade em análise e pesquisa jurídicas, além da redação de peças processuais; (vii) habilidade em advocacia oral; (viii) habilidade no uso de assistentes técnicos; (ix) familiaridade com técnicas de investigação forense; (x) habilidade na investigação e produção probatória sobre condições mentais e outros fatores de mitigação da pena; (xi) habilidade em seleção de jurados, exame cruzado de testemunhas, alegações finais orais etc.

Um desses Advogados deve desempenhar papel de líder (lead counsel), tendo a responsabilidade pela pronta reunião da equipe de defesa e por fazer os arranjos contratuais necessários, devendo alocar, dirigir e supervisionar seu trabalho, além de demandar todos os recursos necessários para tanto. Ademais disso, a equipe de defesa deve contar com no mínimo um investigador particular e um especialista em mitigação de pena. Pelo menos um dos integrantes da equipe deve ter treinamento e experiência na avaliação de alterações mentais.

O segundo é a questão temporal: os Advogados nomeados devem iniciar meticulosa investigação defensiva independente e preparação para o julgamento assim que forem nomeados, mesmo antes de o acusador decidir pelo pedido de aplicação da pena de morte. A finalidade é amealhar elementos que auxiliem a persuasão do acusador a não pedir aplicação da pena capital ou fazer acordo (plea bargain), ou a persuasão dos jurados quanto à impossibilidade jurídica de aplicar a pena letal (v.g. por inimputabilidade do acusado etc.).

O terceiro é a relação com o cliente, que exige a canalização do esforço necessário para a criação de relação Advogado-cliente que seja contínua, fiduciária e próxima. O diálogo com o cliente deve abarcar todas as questões materiais e processuais que possam razoavelmente impactar o desfecho do caso penal. O Advogado deve comunicar-se adequadamente com o cliente e autoridades públicas, visando à proteção dos direitos fundamentais do cliente.

O quarto é a investigação defensiva sobre questões fáticas e jurídicas relativas à culpa do acusado e à pena aplicável, que deve ser conduzida, de forma minuciosa e independente, em todas as etapas da persecução penal. Esse dever existe independentemente da confissão, de prova incriminadora robusta, ou da intenção de renúncia a esse direito pelo cliente. Também há o dever de verificar, de forma independente e periódica, a completude dos autos do processo criminal, suplementando-os quando necessário. Além disso, o Advogado deve examinar a defesa técnica do cliente em fases anteriores da persecução penal, entrevistando os integrantes da equipe de defesa anterior e examinando seus arquivos sobre o caso. 7

O quinto é a argumentação, devendo o Advogado considerar todas as possíveis manifestações defensivas (v.g. contraditas, impugnações, objeções, pedidos etc.), investigando minuciosamente sua base antes de concluir pela apresentação em juízo. Essa valoração estratégica deve levar em conta: (i) as características singulares (legais e práticas) da pena fatal; (ii) a quase certeza de que todos os meios legais de impugnação serão manejados, caso ocorra condenação à pena de morte; (iii) a importância da proteção dos direitos do cliente contra futuras alegações de renúncia, preclusão, perda etc.; (iv) os outros potenciais benefícios e riscos inerentes à apresentação de cada manifestação defensiva.

Quando decidir apresentar determinada manifestação, o Advogado deve fazê-lo tão vigorosamente quanto possível, adaptando-a às peculiaridades do caso concreto e à legislação aplicável naquela jurisdição. Destarte, o Advogado deve assegurar o registro completo de todos os procedimentos legais relacionados àquela manifestação. Por fim, o Advogado deve avaliar o potencial benefício de aduzir argumentação jurídica cuja base é recente, ou suplementar argumentos anteriores com nova informação factual ou jurídica.

O derradeiro é a preparação para o julgamento, baseada na formulação de teoria do caso com base no resultado da investigação defensiva. A sobredita natureza bifurcada do procedimento apresenta dificuldades adicionais, ante a possível contradição entre as respectivas teses defensivas apresentadas nas fases da culpa e da aplicação da pena. Assim, o Advogado deve buscar teoria do caso que seja efetiva nessas duas etapas, buscando minimizar as inconsistências. 8

Hoje há relativo consenso que uma das causas determinantes da aplicação da pena capital é a desigualdade substancial das partes processuais, em razão da falta de comprometimento, experiência, habilidade ou recursos dos Advogados nomeados para o acusado. 9

Os cinco principais erros cometidos por defensores capitais são omissões em: (i) estabelecer relação Advogado-cliente sincera e produtiva; (ii) realizar meticulosa investigação preliminar sobre os fatos naturalísticos imputados e o histórico do acusado; (iii) estabelecer boa relação de trabalho colaborativo com integrantes da equipe de defesa; (iv) escolher assistentes técnicos adequados para o caso concreto; (v) conhecer e seguir os precedentes jurisprudenciais da Suprema Corte. 10

Malgrado não adotemos a pena de morte para delitos comuns, nem crimes militares em tempo de paz, o tema arrostado é interessante para ilustrar como: (i) o Código de Ética e Disciplina da OAB possui normas pouco numerosas, específicas e satisfatórias sobre a advocacia criminal, especialmente em casos complexos; (ii) a atuação do Advogado nesses casos exige habilidades relacionadas à inteligência emocional e ao trabalho colaborativo com assistentes técnicos, investigadores particulares etc., alheias à sua tradicional matriz de formação e treinamento.

1 TABAK, Ronald. Capital punishment, In: The state of criminal justice 2019, pp. 231-317. Chicago: American Bar Association, 2019.

2 428 US 153 (1976).

3 Os Advogados e Defensores Públicos que se dedicam à defesa capital buscam esse nicho profissional por variegados motivos: (i) convicção moral contrária à pena de morte e sua aplicação seletiva, por vezes influenciada por valores religiosos; (ii) progressão natural na carreira profissional, em direção a casos mais complexos; (iii) atração por atuação profissional mais emocionante, intensa e gratificante, que impõe maior desafio intelectual ao defensor; (iv) prestígio social decorrente da atuação nos casos considerados mais difíceis e midiáticos da advocacia criminal; (v) comportamento desafiador e desobediente a figuras de autoridade, ou histórico de trauma pessoal; (vi) remuneração pública mais elevada (GOULD, Jon; BARAK, Maya Pagni. Capital defense: Inside de lives of America’s death penalty lawyers, pp. 63 e ss. New York: New York University Press, 2019).

4 GOULD, Jon; BARAK, Maya Pagni. Op. cit., p. 47.

5 AMERICAN BAR ASSOCIATION (ABA). Guidelines for the appointment & performance of defense counsel in death penalty cases, In: Hofstra Law Review, n. 31, v. 04, pp. 913-1.090, 2003.

6 No sistema federal de administração da justiça criminal norte-americano, o Advogado nomeado e o volume de recursos disponíveis para a defesa capital são influenciados por fatores extrajurídicos tais como a cultura punitiva local, o perfil do Juiz, o volume de processos, a raça do acusado etc. (GOULD, Jon; KENNETH, Leon. A culture that is hard to defend: Extralegal factors in federal death penalty cases, In: Journal of Criminal Law and Criminology, v. 107, n. 04, pp. 643-686, 2017).

7 O precitado cariz bifurcado do procedimento acarreta dilema ético para o Advogado cujo cliente alega inocência, pois limitações de recursos humanos e materiais etc. podem dificultar a decisão estratégica sobre o foco da investigação defensiva: provas da inocência para apresentação durante a primeira fase procedimental, ou provas de mitigação da pena para uso na fase subsequente (WHITE, Welsh. A deadly dilemma: Choices by attorneys representing “innocent” capital defendants, In: Michigan Law Review, n. 102, pp. 2.001-2.064, aug. 2004).

8 BRIGHT, Stephen. Developing themes in closing argument and elsewhere: Lessons from capital cases, In: Litigation, v. 27, n. 01, pp. 40-44, 2000.

9 BRIGHT, Stephen. Counsel for the poor: The death sentence not for the worst crime but for the worst lawyer, In: The Yale Law Journal, n. 103, pp. 1.835-1.883, 1994.

10 GOULD, Jon; BARAK, Maya Pagni. Op. cit., pp. 48-49.

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