Opinião

Nosso Direito e a pós-pandemia — Parte 1

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25 de maio de 2020, 21h04

1 — Pandemia e colonialismo
Quando há mudanças no poder planetário, parece que a história se acelera. As mudanças atuais eram previsíveis. Entre outros, Francisco disse na “Laudato Si: isto não se sustenta”. A pandemia precipita as coisas, mas, para além das advertências da OMS, também não é algo de novo na história.

Se removermos a máscara ideológica do neoliberalismo, veremos que o mundo sofre um totalitarismo, neste caso financeiro, que pratica uma nova forma de colonialismo a que podemos chamar de colonialismo tardio, para diferenciá-lo das fases anteriores, isto é, do colonialismo originário e do neocolonialismo. Essa nova etapa colonial enrosca-se agora em si mesma e paralisa a economia mundial.

O colonialismo tem a sua história, que não deve ser confundida com a história universal, como Hegel afirmava. Essa história nos diz-nos que esta não é a primeira vez que uma hegemonia mundial se enrosca, nem as infecções lhe são estranhas.

A revolução mercantil — que tornou possível o colonialismo — foi impulsionada pelo comércio europeu com o Oriente, que trouxe ratos e a peste bubônica, matando um terço da população europeia.

Lançados ao colonialismo originário, os espanhóis contaminaram os índios com enfermidades, produto da domesticação europeia de animais, contra os quais os índios não tinham anticorpos, o que matou metade da população autóctone. Ao mesmo tempo, tornaram a sua sociedade tão hierárquica que, quando a revolução industrial surgiu, a burguesia europeia não foi capaz de cria-la na Espanha e o seu império entrou em colapso.

Para satisfazer o extrativismo insaciável, cometeu-se o crime do escravismo contra os africanos, que trouxeram a febre amarela, e, quando o neocolonialismo quis facilitar a comunicação interoceânica com o Canal do Panamá, essa infecção fez fracassar a primeira tentativa de construí-lo.

O neocolonialismo cometeu genocídios horríveis, especialmente na África, até culminar numa guerra interimperialista, que, no final, desencadeou a chamada gripe espanhola. Na segunda fase dessa tragédia, o genocídio foi cometido no seu próprio território, vitimando pessoas tão pobres em melanina como os seus líderes.

Agora o tardo-colonialismo financeiro das transnacionais, com a sua brutal depredação do meio ambiente e a destruição indiscriminada dos equilíbrios biológicos, foi gerando vírus em série, até ser capaz de paralisar a economia mundial.

O atual corte arbitrário do que nos explica a ciência biológica imagina o inimigo é o vírus e, por conseguinte, estaríamos em guerra contra o vírus quando, se houvesse guerra, esta deveria ser contra a fábrica de vírus em série, que é, precisamente, a fábrica de vírus em série do atual totalitarismo financeiro predatório do meio ambiente, que produziu a vaca louca (para alimentar os ruminantes com farinha de cadáveres), a gripe asiática, a gripe de Hong Kong, o VIH, a gripe suína, a SARS, o Ebola, o modelo de coronavírus 2015 e agora a nova versão 19.

Como se isso não bastasse, fabricam, então, as vacinas, patenteiam-nas e as vendem a quem pode pagar: todos os anos morrem na Índia cem mil crianças de pneumonia, enquanto a empresa transnacional que detém a patente da vacina embolsa bilhões de dólares.

Escravidão, submissão à servidão, atrozes crimes de massa, genocídios, gula hegemônica, concentração ilimitada da riqueza, suicídios das sucessivas oligarquias cegas pelo seu insaciável desejo de poder e geração de epidemias são fenômenos interligados e presentes desde a gestação do colonialismo na Europa até as sucessivas fases no mundo.

2 — A natureza do totalitarismo financeiro
É evidente que estamos sujeitos a um poder planetário que concentra uma riqueza ilimitada, com a consequente exclusão genocida de milhares de pessoas, para as quais exerce um colonialismo de sucção impiedoso sobre a nossa região por intermédio de um endividamento concertado por parte dos seus vice-reis locais, que nos submetem a jurisdições estrangeiras.

A verdade é que este totalitarismo financeiro é hoje equivalente ao de entreguerras, ou seja, para legitimar os genocídios já não se usam camisas cáqui ou pretas, nem se prometem paraísos de raças puras superiores ou sociedades sem classes, nas quais todos seríamos felizes, mas, sim, uma felicidade generosamente derramada por uma riqueza cada vez mais concentrada.

O discurso com que este totalitarismo é mascarado não está escrito em Mein Kampf, mas nas obras de Milton Friedman e Friedrich von Hayek. Tampouco se promete o ariano puro, nem o novo homem, mas o homo economicus.

É esse discurso que se confronta agora com os direitos humanos, incorporados no Direito internacional desde o final da Segunda Guerra Mundial. Enquanto esses últimos proclamam que cada ser humano é uma pessoa e, pelo fato da sua existência, tem alguns direitos elementares e básicos, a ideologia que se autodenomina neoliberal afirma que, pelo simples fato de ter nascido, um sujeito não tem direito de reivindicar nada (portanto, von Hayek). Embora nem todos os acólitos dessa idolatria sejam tão explícitos e sinceros, os cadáveres no Mediterrâneo ou a “experiência Pinochet” de Friedman mostram que compartilham essa premissa.

Os gestores deste totalitarismo financeiro nada mais podem fazer do que obter lucros sem respeitar quaisquer limites, uma vez que, com a financeirização da economia, as empresas transnacionais são geridas por tecnocratas que têm de cumprir esse objetivo ou são substituídos.

Na execução desses mandatos iniludíveis, a conduta dos gestores do totalitarismo financeiro tornou-se criminosa em grande escala: extorsão, trabalho escravo, fraudes fiscais, evasão fiscal, administrações fraudulentas, destruição de ecossistemas, extinção de espécies, desertificação, contaminação da água e da atmosfera, ocultação de tráfico ilícito, reciclagem de dinheiro, empresas fantasmas e, se necessário, também golpes de Estado e execução de civis. Todos eles se permitem sem qualquer limite. O crime organizado mais poderoso do planeta é exercido por estes gestores com os seus macrocrimes. Isso não deve ser surpreendente, porque todos os totalitarismos foram criminosos; eles mudam apenas os seus métodos, de acordo com os seus contextos de poder.

3 — A situação tardo-colonial
Na nossa realidade colonial de extrema concentração da riqueza, com os mais elevados coeficientes de Gini do planeta, a paralisia conduzirá a classe média à pobreza. Aos fortes protestos da pré-pandemia juntar-se-ão as classes médias desclassificadas. Os nossos Estados não estavam preparados para responder racionalmente às exigências acima referidas e, ainda menos, estarão preparados para as que vierem.

Se aspiramos ao conflito que esta emergência anuncia para encontrar soluções não violentas e, por conseguinte, para que os nossos Estados possam oferecer soluções racionais no quadro democrático e republicano, o primeiro passo deve ser reconhecer a dura realidade da qual teremos de partir, isto é, de Estados enfraquecidos, esquálidos, muito pouco democráticos e — talvez ainda menos — republicanos.

O mito mais negativo — porque é imobilizador — faz-nos acreditar que vivemos em Estados com instituições sólidas, baseadas em princípios democráticos e republicanos, garantidos em nível regional por um Direito internacional eficaz, quando nada disso é verdade. Ninguém compraria outra roupa se acreditasse que a que está usando é da mais alta elegância, quando na verdade estão todos em trapos que nem sequer cobrem as suas partes íntimas.

Embora não exista um modelo democrático único, o que se generalizou na região é o das democracias pluralistas, em que os cidadãos canalizam a sua vontade através dos partidos políticos. Ora, deste modelo institucional democrático só sobram restos em nossos Estados.

Isto deve-se ao fato de os partidos políticos só existirem formalmente, uma vez que a sua função de canalização é exercida pelas empresas que monopolizam a comunicação em cada país. A partir de uma análise funcional, cada uma delas é um partido político e, além disso, por constituir monopólio, é um partido único. O monopólio desses partidos isolados que são funcionais para o poder colonial é apresentado como um direito à liberdade de expressão, quando na realidade é a sua negação mais aberta.

Nas concentrações urbanas, o voto de percentagens elevadas de cidadãos é manipulado, de acordo com os onze princípios bem conhecidos de Göbbels, levando ao extremo o famoso teorema de Thomas: não importa se algo é verdadeiro ou falso, o que importa é que seja tomado como certo e, nesse caso, produz efeitos reais. Estas são as profecias autorrealizadas. As notícias falsas circulam mais rapidamente do que a informação correta, mesmo nas redes — cuja tecnologia também é monopolista – nas quais estão armados exércitos de duendes e de robôs simuladores de seres humanos.

Isso determina o comportamento de uma grande parte da população, que de boa fé experimenta a realidade criada pelos atores disfarçados de comunicadores, alguns dos quais estão tão familiarizados com os personagens dos seus libretos que chegam a acreditar nas mentiras que espalham.

Estes partidos políticos únicos e midiáticos fabricam os vice-reis locais do totalitarismo financeiro e, portanto, como todos os aparelhos de propaganda totalitária, não reconhecem qualquer limite ético ou legal.

Os políticos são reféns desses partidos únicos, que estabelecem as suas agendas, sabendo que entre os que lutam pelo poder sempre haverá alguns mais inescrupulosos, que, sem dúvida, levam vantagem sobre aqueles que oferecem alguma resistência, bem como sobre aqueles que não são menos genuflexos por medo ou por restos de dignidade e ética, mas que também não ousam denunciar e muito menos resistir às suas ameaças de linchamento. Eles sabem muito bem que, em muitos casos, estes últimos também cederão às suas diretivas, porque jogam com a sua ingenuidade, fazendo-os acreditar que o seu silêncio os protege de serem alvos dos seus comunicadores disfarçados.

Os políticos mais inescrupulosos competem para se tornarem candidatos a vice-reis dos partidos únicos midiáticos, porque sabem que, como tal, têm uma probabilidade muito alta de alcançarem os governos com uma falsa aura de democracia. Por vezes, quando o vice-rei exerce o seu poder colonial de forma demasiado gananciosa e desajeitada, a sua reeleição falha, como na Argentina. Em alguns outros casos, o vice-rei trai a sua própria força política, talvez proclamando-se como tal, quando no governo.

Essas democracias de partido único assumem geralmente formas plebiscitárias, uma vez que, já no governo, os vice-reis exercem plenos poderes em aberta violação aos princípios republicanos, às vezes através de plebiscitos explícitos, mas na maioria dos casos, de fato, e perante a indiferença pública, sustentada pela desinformação da própria publicidade do regime.

A primeira preocupação dos vice-reis é o reajuste dos poderes judiciais a seu gosto, dado que deles depende a impunidade dos seus mandantes, sócios e amigos, bem como a perseguição e difamação dos seus opositores e obstrutores.

A facilidade dessas manobras depende do grau de deterioração prévia da organização judiciária. Em geral, as corporações judiciais estão integradas por pessoas que privilegiam a sua estabilidade laboral, razão pela qual a docilidade é obtida, em primeiro lugar, oferecendo algumas racionalizações ou mecanismos de fuga que permitam sua paz burocrática.

Como em qualquer domínio profissional, no sistema judicial existem algumas pessoas sem escrúpulos e também alguns criminosos, que são utilizados pelos vice-reis e que, em regra, se oferecem para servi-los, seja para conseguir uma rápida promoção na hierarquia, seja por vontade dos meios de comunicação social, por aspiração ao estrelato político ou à corrupção.

Os nossos vice-reis cumprem o mandato metropolitano, eliminando aqueles que os incomodam. Este colonialismo não os mata, como ocorreu com Sucre, Moreno, Monteagudo, Dorrego ou com o próprio Bolívar, se a tuberculose não o tivesse feito antes, nem os envia para o exílio, como fez com San Martin. Elimina rudemente os líderes políticos, com golpes de Estado abertos, como na Bolívia, mas outras vezes orquestra golpes brandos, que prostituem a política, já que exploram dela seus piores e mais baixos instintos.

A eliminação dos líderes populares por decapitação pública é completada com campanhas dos partidos dos meios de comunicação social dos vice-reis, em combinação com um pequeno grupo de juízes patológicos, em bandos dos quais são membros ativos os agentes dos serviços secretos, os criminosos que acusam por meio de delações, as falsas testemunhas, os procuradores extorsores, a polícia corrupta etc.

Para esses discípulos de Freisler e Vichinsky, tudo é válido: escritos detalhados misteriosos; memórias incríveis; rapidez processual incomum; invocação aberrante da doutrina jurídica; clonagem de processos; pluralização de bandos; governos considerados associações ilícitas e, é claro, violação de regras processuais básicas. Se isso não for suficiente, alguns juízes são ameaçados e perseguidos por serem irritantes, porque é isso que a luta contra o flagelo da corrupção exige, uma vez que se tornou o novo Satanás deste tempo, com quem as novas bruxas, que são os políticos populares, fariam um pacto.

Enquanto estas demonstrações de mãos limpas são dramatizadas pelos partidos políticos mediáticos, os vice-reis — e os seus parceiros, familiares e amigos — endividam os nossos países, comprometendo o seu PIB durante décadas, enquanto se beneficiam de negociações encobertas por seus cúmplices judiciais.

Chama-se a isto lawfare ouguerra legal, quando na realidade se trata de uma “guerra ilegal em todos os sentidos. Essa é a dimensão que este recurso assumiu, que é objeto de uma análise cada vez mais intensa nas academias de Direito.

O último vice-rei argentino acabou também com o Legislativo, valendo-se do poder de afogar economicamente os governos provinciais. O nosso federalismo foi por água abaixo, tal como a separação republicana de poderes, com o exercício de plenos poderes, não concedidos por ninguém. Outros são mais rudes, arrestando os bens dos legisladores da oposição ou ameaçando as suas famílias.

O que resta da República, da democracia e mesmo do próprio Estado? Apenas o vislumbre da realidade para parte dos cidadãos, porque — felizmente — não existe um sistema perfeito de registro humano.

Leia nesta terça-feira (26/5) a segunda parte do artigo

Tradução: Juarez Tavares e Carol Proner

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