Opinião

Motoristas de aplicativos precisam de uma normatização específica

Autor

  • Francisco de Assis Barbosa Junior

    é juiz do Trabalho do TRT da 13ª Região pós-graduado em Direito do Trabalho mestre em História pela UFCG doutor em Direito pela Universidade do Minho — Portugal professor de graduação da Unifacisa e de pós-graduação do Unipe da Esmat 13 e da Unifacisa e autor de artigos capítulos e livros como "Gig Economy e Contrato de Emprego" "Contrato de Teletrabalho" e "Teletrabalho Transnacional: Normatização e Jurisdição".

25 de maio de 2020, 18h08

A gig economy pode ser entendida como um mercado de trabalho que envolve, de um lado, trabalhadores com contrato de atividade por tempo certo e (a priori) sem vínculo empregatício e, de outro, empresas, as quais os contratam para realização de tarefas específicas, não havendo submissão às regras trabalhistas dos empregados ditos comuns. No caso, suas atividades assumem uma nova feição, com intermediação entre o obreiro e o consumidor final feita à distância por empresas via meios telemáticos.

Essa economia envolve duas principais formas de labor: o crowdwork e o trabalho on-demand por meio de aplicativos. A primeira concerne à realização de tarefas a partir de plataformas online, enquanto a segunda trata da execução de tarefas tradicionais (como transporte e limpeza) demandadas em aplicativos gerenciados por empresas.

Grandes discussões são travadas no mundo inteiro sobre a existência, ou não, de vínculo de emprego entre as empresas da gig economy e os trabalhadores que a elas prestam serviços, especialmente acerca do labor on-demand realizado por motoristas. Por outro lado, igualmente há intensos debates sobre uma posição intermediária desses obreiros, a qual ficaria a meio caminho da subordinação e da autonomia, demandando, por conseguinte, uma normatização específica.

No Brasil, onde há registro de mais de 1,1 milhão de motoristas dos aplicativos Uber, Cabify e 99, naturalmente essas discussões mantêm a mesma intensidade, sendo potencializadas por uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho de fevereiro de 2020, assim como por normas hoje vigentes de forma definitiva ou temporária, a exemplo das Leis nº 12.587/2012 e nº 13.982/2020.

Presença ou ausência de vínculo de emprego
O TST, em acórdão prolatado no RR-1000123-89.2017.5.02.0038, entendeu pela inexistência de relação de emprego entre os motoristas e o aplicativo de transporte Uber (reclamado no feito).

Em linhas gerais, a decisão foi baseada no alto percentual do valor pago pelos usuários do aplicativo destinado aos motoristas (entre 75% e 80%), o qual revelar-se-ia até superior ao que a corte vem admitindo como bastante para a caracterização da relação de parceria entre os envolvidos. Por outro lado, foi afastada a subordinação, entendendo-se pela presença de autonomia na consecução do labor mediante livre disposição pactual das partes.

No julgamento reconheceu-se a possibilidade de avaliação dos motoristas pelos usuários como uma ferramenta de feedback para estes quanto à qualidade da prestação de serviços do condutor. Já a utilização dessas avaliações para eventual descredenciamento do motorista seria conveniente para a empresa, porém, principalmente para a coletividade, a quem melhor aproveita a confiabilidade e qualidade dos serviços prestados.

Oportunamente externando respeito pela bem fundamentada decisão ora analisada, dela discordamos.

O simples fato do percentual pago ao motorista de aplicativo ser maior que a média usual não afasta por si só o vínculo de emprego, antes sendo justificado pelo caráter inovador da relação de trabalho em estudo, a qual é firmada sob os novos parâmetros da Indústria 4.0, assim como pelo fato do trabalhador arcar com todas as despesas do veículo utilizado (aquisição ou aluguel, manutenção, combustível necessário às viagens etc.), gastos que demandam maior retribuição proporcional pelo labor para serem enfrentados. Ademais, a existência de uma grande quantidade de motoristas de aplicativos enseja considerável margem de lucro para as empresas mesmo com percepção de percentual igual ou inferior a um quarto do total pago pelos consumidores, o que não ocorre com salões de beleza, segmento cujas decisões foram utilizadas como precedentes pelo TST.

Noutra linha, a definição clássica do que seja a "subordinação jurídica" para fins de caracterização de um contrato de emprego foi forjada dentro de um conceito trabalhista tradicional, no "chão de fábrica", com fiscalização direta do empregador sobre o empregado, demandando, por conseguinte, interpretação inovadora quando da presença de relações de labor distintas das tradicionais.

Este é o caso dos motoristas de aplicativos. Por exemplo, cabe à Uber escolher os motoristas que podem se cadastrar, indicar os clientes disponíveis para eles e fixar o preço da viagem. O trabalhador não detém qualquer função de gestão do negócio, sendo da empresa o monitoramento eletrônico do labor, a análise de sua duração e a avaliação dos condutores dos veículos, podendo dispensar seus serviços.

A realidade acima narrada parece-nos típica de uma relação empregatícia que adota uma subordinação mitigada, a exemplo da estrutural, em que o obreiro se insere na dinâmica do tomador de seus serviços, não recebendo ordens diretas do patrão, sendo fundamental apenas que dentro da atividade desse tomador esteja estruturalmente vinculado o trabalhador.

Legislação concernente aos motoristas de aplicativos hoje
Apesar dos argumentos favoráveis à existência de uma relação de emprego no particular, a legislação ora existente, seja permanente, seja surgida com a pandemia e de caráter temporário, segue a linha adotada pelo TST, considerando autônomos os motoristas de aplicativos.

A Lei nº 13.640/2018 alterou a Lei nº 12.587/2012 e reconheceu como transporte remunerado privado individual de passageiros as viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede, tendo, inclusive, previsto a inscrição obrigatória do trabalhador como contribuinte individual do INSS, nos termos do artigo 11, V, "h", da Lei nº 8.213/1991.

A citada Lei nº 12.587/2012 passou a contar com o artigo 11-A, o qual confere aos municípios e ao Distrito Federal a regulamentação e fiscalização do serviço de transporte por aplicativo, afastando-o, por conseguinte, da inspeção dos fiscais federais do trabalho, e mesmo da limitação normativa imposta pelo artigo 22, I da CF.

Com fins de atingir a eficiência, a segurança e a efetividade na prestação do serviço e não a proteção de direitos dos trabalhadores, nas mencionadas regulamentação e fiscalização devem ser cobrados os tributos municipais devidos, a contratação de seguro de acidentes pessoais a passageiros e do DPVAT, além da inscrição do motorista como contribuinte individual no INSS.

Para que possa exercer o seu mister, o motorista de aplicativo deve preencher os requisitos do artigo 11-B da Lei nº 12.587/2012.

Por seu turno, o artigo 2º, VI, da Lei Emergencial nº 13.982/2020 concedeu aos motoristas em estudo o auxílio emergencial, seguindo o rumo do reconhecimento de sua autonomia. Em reforço ao entendimento da inclusão desses trabalhadores na citada norma, destacamos algumas das razões de veto do § 2º-A da Lei nº 13.998/2020, as quais concernem à inconstitucionalidade do dispositivo por indicar algumas profissões como aptas à percepção do benefício (entre elas a dos motoristas de aplicativos) em detrimento de outras, o que ensejaria mácula ao princípio da isonomia.

Dessa arte, ao vetar a menção expressa aos motoristas de aplicativos feita pelo Congresso Nacional através do projeto de Lei nº 873/20, não negou o presidente da República o caráter autônimo de seu labor, ao contrário, acatou o mesmo, rejeitando a diferenciação dessa profissão e das outras mencionadas no dispositivo rejeitado das demais de feição autônoma existentes no Brasil.

Direito comparado: motorista de aplicativo economicamente dependente
Aqui externando ao legislador e à Presidência de República o mesmo respeito endereçado aos doutos julgadores do TST já exposto, parece-nos de acerto duvidoso a criação de uma legislação específica para os motoristas de aplicativos que os reconheçam como autônomos, olvidando-se, por conseguinte, as especificidades de seu labor.

Aqueles, como defendido, são empregados, não obstante, se as características de seu trabalho não parecerem ao legislador brasileiro suficientes para esse enquadramento, certamente possuem peculiaridades para ensejar uma normatização que lhes atenda as justas demandas, sem o reconhecimento da presença de autonomia plena no particular.

No caso há um elemento essencial diferenciador do motorista de aplicativo de um trabalhador autônomo tradicional: a existência de um terceiro na sua relação com os clientes. Na forma mencionada, a relação triangular é típica da gig economy, em que numa das pontas fica a empresa que opera, via meios telemáticos, a união temporária das outras duas. Tal fato afasta a autonomia absoluta do obreiro, o que demanda a proteção do trabalhador adotada pela Constituição Federal, com respeito ao valor social do labor (artigo 1º, IV da CF).

O ineditismo dessa relação de trabalho demanda igualmente a adoção de caminho inédito no ordenamento brasileiro, mostrando-se pertinente, para tanto, a análise de legislações vigentes noutros países, as quais podem servir de norte para a normatização buscada.

Como exemplo legislativo pertinente, pode-se citar o de Portugal, onde o artigo 10º do Código do Trabalho dispõe sobre as situações equiparadas às de emprego.

"Situações equiparadas As normas legais respeitantes a direitos de personalidade, igualdade e não discriminação e segurança e saúde no trabalho são aplicáveis a situações em que ocorra prestação de trabalho por uma pessoa a outra, sem subordinação jurídica, sempre que o prestador de trabalho deva considerar-se na dependência econômica do beneficiário da atividade".

O trabalho autônomo economicamente dependente é exercido por pessoas que laboram com total autonomia, porém, não para o mercado aberto, pois atribuem o resultado do seu mourejo para um único cliente, parecendo-nos ser esse o caso dos motoristas de aplicativos. Ao eventualmente seguir o caminho português, não se estará enquadrando esses motoristas como empregados, mas, sim, criando para eles uma normatização própria.

Por seu turno, a Lei portuguesa nº 101/2009 regulamenta a prestação de serviços desenvolvida em domicílio ou em instalação do trabalhador sem subordinação jurídica, mas com dependência econômica. No caso, a analogia com o motorista de aplicativos parece surgir naturalmente quando se fala em "instalação" pertencente ao obreiro, a qual pode ser entendida de forma extensiva como o seu veículo.

Em linhas gerais, a Lei nº 101/2009 traz em seu bojo uma série de deveres para as partes, especialmente ligados à proteção da privacidade, segurança e saúde no trabalho, formação profissional e remuneração. Nela há normatização de alguns pontos essenciais para a espécie de quase emprego regulamentada, como o sigilo, pois obriga o trabalhador a manter o segredo acerca de técnicas e modelos empresariais sobre os quais tenha tido conhecimento em razão do labor.

Ao tratar do sistema remuneratório, a lei indica critérios para sua fixação, como o tempo médio de execução do bem ou serviço, a atividade exercida, a retribuição mínima mensal baseada na paga para realização de atividades semelhantes, assim como os custos do trabalhador relacionados ao próprio exercício da atividade.

Essas bases para a fixação remuneratória também podem ser aplicadas nas relações em estudo, com cominação de retribuição mínima de labor a qual garanta a dignidade do trabalhador e seja suficiente também para cobrir os seus elevados custos relacionados aos veículos.

Na Lei nº 101/2009 há previsão do pagamento de valores equivalentes ao duodécimo da soma das remunerações auferidas em cada ano civil, pré-aviso escrito no caso de rescisão contratual, além de indenizações por faltas contratuais dos litigantes, regras estas que igualmente podem ser aplicadas na nova regulamentação analisada, com previsão, no caso, de férias, aviso prévio e multas para os atores das relações de transporte via meios telemáticos.

As leis portuguesas ora estudadas mostram-se atuais e atentas às inovações do universo do trabalho, que cada vez mais afastam a eficácia da legislação tradicional ante sua constância e efervescência. Sua adoção no caso brasileiro para os motoristas de aplicativos, ao menos como uma referência, ajudaria a criar uma normatização mais justa e condizente com as necessidades desses trabalhadores, os quais assim teriam seus direitos mínimos e dignidade respeitadas, fato de ocorrência duvidosa caso enquadrados como trabalhadores autônomos tradicionais.

Conclusões
As situações limítrofes das novas relações de trabalho como a dos motoristas de aplicativos demandam respostas precisas do legislador e da jurisprudência, enquadrando-as, ou não, como de emprego. Caso o caminho adotado seja pela negativa, mister se faz a criação de uma normatização específica para os novos contratos de atividade firmados, a qual trace direitos mínimos para os obreiros, resguardando sua dignidade enquanto pessoa humana trabalhadora.

Normas como as forjadas pelo legislador português também o podem ser pelo brasileiro, cumprindo-se, assim, os ditames constitucionais de proteção do trabalho e dos trabalhadores. O silêncio do legislador, ou adoção por ele de normas genéricas relacionadas ao labor autônomo, equivale não só a uma omissão, mas, também, a uma afronta ao princípio da isonomia, o qual, na sua acepção clássica, determina o tratamento desigual dos desiguais na medida de sua desigualdade.

 

Referências bibliográficas:

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Autores

  • é juiz do Trabalho do TRT da 13ª Região, pós-graduado em Direito do Trabalho pela Universidade Potiguar, mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande (PB), doutor em Direito pela Universidade do Minho (Portugal), professor do curso de Direito da UNIFACISA, professor de Pós-Graduação do UNIPE, da ESMAT 13 e da UNIFACISA, autor de artigos, capítulos de livros e de livros como Gig Economy e Contrato de Emprego, Contrato de Teletrabalho e Teletrabalho Transnacional: Normatização e Jurisdição.

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