Opinião

Reflexões sobre a herança digital e o bitcoin

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24 de maio de 2020, 12h27

O surgimento da internet, sem dúvidas, foi um marco disruptivo para a humanidade, revolucionando a forma de nos relacionarmos, desde a esfera íntima até a profissional. A evolução tecnológica que estamos vivendo se caracteriza por um crescimento acelerado e sem precedentes: a tecnologia está sempre se inovando e os dados pessoais digitais crescem exponencialmente.

Assim, nem sempre o Direito consegue acompanhar todas as transformações sociais advindas da propagação da internet em nossas vidas. A herança digital surge, portanto, diante desse cenário de ausência de regulamentação estatal ou do devido amparo jurídico, não havendo legislação específica ou jurisprudência sólida sobre a sucessão de bens digitais. Alguns projetos de lei que versavam sobre o assunto, como o PL 1.331/2015, chegaram a ser propostos no Congresso Nacional, mas não foram para frente por possuírem equívocos e não contemplarem de maneira suficiente toda a gama de possibilidades advindas da herança digital.

Mas, afinal, o que é herança digital?
Herança digital consiste no acervo digital de uma pessoa que falece e que poderia ser transmitido aos herdeiros, podendo englobar fotos, vídeos, senhas de acesso às transações ou às aplicações financeiras e ao próprio perfil do de cujus nas redes sociais, o qual, muitas vezes, é utilizado para exploração econômica.

Uma questão levantada pela doutrina acerca da transmissão post mortem de bens digitais é a de que tal matéria não se limita ao instituto do Direito das Sucessões, uma vez que também versa sobre matérias e direitos existenciais, já que, muitas vezes, estamos falando de permitir o acesso pelo herdeiro a contas e perfis pessoais do falecido. Portanto, os direitos da personalidade, como o direito à privacidade, devem também ser tutelados quando falamos de herança digital [1].

Existem, todavia, bens digitais de caráter somente econômico sobre os quais não há divergência doutrinária quanto à sua transmissibilidade, já que sobre eles recai a ideia consagrada no Código Civil de 2002 de patrimônio enquanto complexo de relações jurídicas de conteúdo econômico [2]. Desse modo, devem ser abrangidos no processo sucessório e na partilha entre os herdeiros.

Há de se imaginar, portanto, que as criptomoedas, adquiridas estritamente pelo seu caráter monetário, façam parte desse rol de ativos digitais transmissíveis. O Bitcoin, considerada a mais famosa das criptomoedas, passou a ser adquirido em larga escala devido à sua alta e rápida valorização, tornando-se um outro meio de investimento. Um reflexo disso, conforme dados coletados pela CoinMap [3], foi o aumento em 2019 de 13% do número de lojas ao redor do mundo em aceitam Bitcoin como meio de pagamento [4].

Assim, cada vez mais presente na vida das pessoas, não demorou para que surgissem conflitos em relação transmissão post mortem de criptomoedas. Ilustrativamente, em 2013, Matthew Moody, um jovem de 26 anos, sofreu um acidente de avião e veio a falecer, deixando para trás criptoativos que adquiriu em vida. Seu pai, Michael Moody, sabia que o filho tinha sido um dos primeiros a minerar Bitcoins e que possuía alguns, os quais atualmente valem milhares de dólares. Todavia, Michael não conseguiu encontrar ou ter acesso a eles, já que, para isso, precisaria das senhas da carteira digital de seu filho [5].

Qual a diferença das criptomoedas para outros bens digitais?
O Bitcoin, assim como as outras criptomoedas, opera com a tecnologia ponto-a-ponto (P2P), a qual utiliza apenas os computadores participantes do próprio sistema e possibilita a transferência de dados sem a necessidade de um terceiro intermediário. Essas transferências são registradas no sistema Blockchain, que é uma espécie de "registro público" do Bitcoin e não possui uma entidade administradora central [6]. Assim, o Bitcoin é completamente descentralizado e não é vinculado a nenhum sistema monetário.

Ademais, como o próprio nome já sugere, essas moedas são criptografadas, o que é usado para garantir a anonimidade dos donos e a segurança das transações. A criptografia consiste em embaralhar e codificar uma mensagem, de forma que apenas quem possua a chave possa decodificá-la. Dessa maneira, o Bitcoin é armazenado em uma carteira virtual que só pode ser acessada ao se utilizar uma chave privada, a qual é verificada pela rede através de uma pública. Se o dono dos criptoativos perde a chave privada que possibilita o acesso à carteira virtual, os Bitcoins se tornam inutilizáveis, ou seja, são perdidos.

Portanto, se o de cujus não deixar enquanto em vida algum mecanismo que informe aos herdeiros sobre sua chave privada, eles nunca terão acesso às criptomoedas ou sequer saberão a quantidade que possuía. Impossibilita-se, assim, a aplicação do instituto de sucessões e a consequente partilha desses bens digitais entre os herdeiros.

O que fazer então?
Diante da natureza descentralizada e criptografada do Bitcoin, faz-se necessário que quem os possua organize em vida um método de transmissão de herança desses bens digitais, possibilitando que o inventariante e os herdeiros tenham acesso à carteira virtual. Uma possibilidade, por exemplo, é deixar escrito, por meio de testamento, informações acerca da existência dos criptoativos, bem como em qual aplicação estão localizados e as suas respectivas chaves de acesso [7].

É importante destacar que é aconselhável aos donos de criptoativos procurar consultoria jurídica acerca do assunto, o que possibilitará um planejamento sucessório que englobe tais bens digitais e, consequentemente, garantirá que esses sejam efetivamente transmitidos aos herdeiros.

 


[1] HONORATO, Gabriel; LEAL, Livia Teixeira. "Exploração econômica de perfis de pessoas falecidas: reflexões jurídicas a partir do caso Gugu Liberato". Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 23, jan./mar. 2020, p. 158. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/issue/view/27

[2] COSTA FILHO, M. A. F. Herança digital: valor patrimonial e sucessão de bens armazenados virtualmente. Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco, n. 09, 2016, p. 205.Disponível em: https://revista.jfpe.jus.br/index.php/RJSJPE/article/view/152. Acesso em: 1º de maio de 2020.

[3] CoinMap é um site que busca por estabelecimentos onde aceitam Bitcoin ao redor do mundo

[6] SILVA, Tiago Mendes da. "A transmissão de herança das moedas virtuais com ênfase no Bitcoin". Monografia de Conclusão de Curso, apresentada para obtenção do grau de Bacharel, no curso de Direito, da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. 2018. Disponível em: http://repositorio.unesc.net/handle/1/5545

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