Opinião

Nova legislação simplifica advocacia criminal europeia contemporânea

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20 de maio de 2020, 6h59

Spacca
Hodiernamente há inegáveis mudanças nos sistemas de administração de Justiça, que repercutem diretamente na advocacia criminal.

A primeira é o movimento de expansão do Direito Penal, resultante de fenômenos característicos da pós-modernidade, tais como a globalização econômica e a integração supranacional. 1

Uma das principais consequências desse movimento expansivo é o aumento quantitativo de casos submetidos aos sistemas de administração de justiça criminal, havendo insuficiência dos seus recursos humanos e materiais para solucionar todos esses casos dentro de prazo razoável. Tal conjuntura gera grande pressão política no sentido da adoção de mecanismos tais como o princípio da oportunidade no ajuizamento da ação penal condenatória e ritos sumários/simplificados.

Exatamente nessa toada soa a Recomendação R(87)18 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, que cuida da simplificação da justiça criminal. O item III.a.7 desse documento recomenda expressamente a adoção de mecanismos de aplicação consensual da pena, desde que compatíveis com “as tradições constitucionais e legais” de cada país. 2

Na Europa, viceja tendência de adoção de mecanismos consensuais de adjudicação do caso penal em praticamente todos os países. 3

Essa mudança foi insuflada pela decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) no caso Natsvlishvili e Togonidze vs. Geórgia em 2014, que concluiu pela compatibilidade entre as garantias do processo justo e equitativo, asseguradas pela Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), e os sobreditos mecanismos. 4

Esse novel paradigma desloca o centro de gravidade da persecução penal do julgamento para a fase de investigação preliminar do crime. A consequência prática é a crescente importância de atuação efetiva do Advogado já durante essa etapa de investigação preliminar.

Tal importância é objeto de interessante artigo científico de Anna Pivaty, Miet Vanderhallen, Yvonne Daly e Vicky Conway. 5

O TEDH, desde o caso Salduz vs. Turquia em 2008, entende que o direito convencional à defesa técnica (artigo 6.3.c da CEDH) exige que, como regra geral, a assistência jurídica seja proporcionada ao investigado desde o seu primeiro interrogatório policial, exceto se houver circunstâncias convincentes para se restringir tal direito. 6

Nessa conjuntura, há ressignificação da intervenção do Advogado na fase em apreço, que deixa de ser meramente preparatória para o julgamento e passa a ter cariz determinante do resultado desse julgamento (v.g. a omissão de impugnação e registro de ilegalidade durante ato de investigação do qual o Advogado participou gera preclusão etc.).

Para tanto, a tradicional matriz de educação e treinamento do Advogado – focada no desenvolvimento de habilidades relacionadas ao contencioso judicial (v.g. pesquisa jurídica; redação de peças processuais; sustentações orais etc.) – se revela insuficiente.

Uma iniciativa adotada no Velho Continente em 2015 para propiciar aos Advogados habilidades mais adequadas à precitada realidade contemporânea é o denominado treinamento SUPRALAT. 7

Seu objetivo é encorajar perspectiva mais ativa, focada no cliente e reflexiva da defesa técnica do investigado na fase da investigação preliminar do crime, via o desenvolvimento de habilidades práticas (especialmente comunicativas).

A atividade consiste em atuação profissional mais intensa na escuta atenta dos atos, na tomada de apontamentos, no apoio efetivo ao cliente e na avaliação contínua sobre a influência dos desdobramentos da investigação preliminar do delito na teoria do caso a ser apresentada em juízo.

O foco no cliente se caracteriza pela construção de relação Advogado-cliente fiduciária e produtiva, que permita adequada compreensão da sua situação e necessidades individuais.

A reflexividade se consubstancia na melhora da capacidade decisória do Advogado.

Em suma, o treinamento SUPRALAT parte da premissa de que a realidade contemporânea impõe ao Advogado criminalista novo papel, novas responsabilidades e novos desafios, a exigir habilidades ainda não incorporadas à sua tradicional matriz de educação e treinamento.

Uma das características da investigação preliminar do delito é seu déficit informativo. Isso significa que o Advogado deve orientar o cliente mesmo sem acesso integral aos elementos informativos amealhados, medidas cautelares sigilosas em curso etc. para tomar decisões estratégicas e táticas informadas. Na maioria dos países europeus, não há previsão legal autorizando a divulgação de elementos informativos ao Advogado previamente ao primeiro interrogatório policial do investigado.

Outra característica da investigação em exame é a urgência. O Advogado deve entrevistar o cliente, inteirar-se dos fatos investigados (na medida do possível), avaliar a situação pessoal do cliente, assisti-lo durante o interrogatório, tomar medidas para assegurar seu direito de liberdade etc., tudo isso em brevíssimo lapso temporal.

Ou seja, o Advogado deve ser capaz de pensar rápido, tomar decisões estratégicas e táticas, agir com assertividade e confiança na interlocução com autoridades públicas etc., mesmo com base em informações precárias. O ambiente policial tende a ser altamente emotivo, em razão da fragilidade emocional e psicológica do investigado preso e da pressão para que as autoridades públicas cumpram formalidades processuais penais em prazos exíguos.

Ademais disso, na etapa persecutória em digressão também há a característica da invisibilidade. Tradicionalmente, oportunidades de compartilhamento de conhecimentos práticos e de recebimento de feedback de colegas sobre a atuação profissional do Advogado surgem nos Tribunais. Por outro flanco, a advocacia na fase de investigação preliminar é mais opaca e invisível para colegas, proporcionando maior grau de insegurança para o Advogado.

Outro ponto é a dificuldade em se estabelecer relação interpessoal fiduciária e producente durante o primeiro encontro com cliente desconhecido, preso e não raro nutrindo sentimentos ambivalentes (v.g. desconfiança, medo, raiva etc.), em razão da suspeita da autoria de crime e subsequente prisão. Tais condições adversas podem dificultar a obtenção de informações imprescindíveis para delinear a estratégia de atuação da defesa técnica.

Destarte, o interrogatório policial é ato consideravelmente menos formal e regulado do que o interrogatório judicial, não havendo definição legal clara das hipóteses que autorizam a intervenção do Advogado.

Outro aspecto digno de nota é que, em sede policial, inexiste árbitro imparcial para mediar a intervenção do Advogado, como ocorre em juízo. Ao contrário, há uma dinâmica discursiva assimétrica (assymetrical discursive dynamic), decorrente do controle exercido pela autoridade policial sobre o fluxo, a estrutura e os tópicos da comunicação, além das oportunidades de intervenção dos demais participantes do ato administrativo.

Não é incomum que a autoridade policial seja refratária a quaisquer teorias do caso alternativas à hipótese objeto da investigação policial, tratando o Advogado com desconfiança por vê-lo como um adversário que pode causar embaraços à investigação (v.g. orientando o interrogando a permanecer em silêncio etc.).

Assim, as autoras do artigo em resenha defendem a modernização dos tradicionais conteúdos dos programas de formação e treinamento do Advogado criminalista.

Os principais pilares dessa reestruturação são os seguintes: (i) desenvolvimento de habilidades de comunicação e relação interpessoal — consideradas por clientes tão importantes quanto o conhecimento jurídico e a experiência — para viabilizar uma relação advogado-cliente fiduciária e produtiva; (ii) foco na reflexão pessoal crítica sobre práticas profissionais e valores éticos e morais, como parte de contínuo processo de aprendizado; (iii) estímulo às práticas colaborativas de aprendizado da prática advocatícia, em comunidades que proporcionem oportunidade de discussão, intercâmbio de experiências e revisão crítica de colegas; (iv) implementação de treinamento interprofissional de Advogados e policiais, para fomentar melhor compreensão sobre procedimentos e rotinas policiais e maior grau de colaboração e confiança entre esses dois grupos.

As autoras concluem que essa nova compreensão sobre as habilidades de comunicação e relação interpessoal do advogado é de fundamental importância para auxiliá-lo a atuar de forma mais efetiva na fase de investigação preliminar do crime.

Entre nós, o artigo em digressão é interessante para ilustrar a necessidade de se aprofundar o debate público qualificado sobre: (i) o papel do Advogado durante a investigação preliminar do crime; (ii) a defasagem do tradicional marco de educação e treinamento do Advogado na prática jurídica penal, focado em habilidades relacionadas ao contencioso judicial.


1 SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión del derecho penal: Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Montevideo: B de f, 2008.

2Wherever constitutional and legal traditions so allow, the procedure of “guilty pleas”, whereby an alleged offender is required to appear before a court at an early stage of the proceedings in order to state publicly to the court whether he accepts or denies the charges against him, or similar procedures, should be introduced. In such cases, the trial court should be able to decide to do without all or part of the investigation process and proceed immediately to the consideration of the personality of the offender, the imposition of the sentence and, where appropriate, to decide the question of compensation.

3 TEDH, caso Natsvlishvili e Togonidze vs. Geórgia, sentença de 08.09.2014, §§ 62-75.

4 BACHMAIER, Lorena. The European Court of Human Rights on negotiated justice and coercion, In: European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice, n. 26, pp. 236-259, 2018.

5 PIVATY, Anna et al. Contemporary criminal defense practice: Importance of active involvement at the investigative stage and related training requirements, In: International Journal of the Legal Profession, v. 27, n. 01, pp. 25-44, 2020.

6 TEDH, caso Salduz vs. Turquia, sentença de 27.11.2008, §§ 50-55. Nas pegadas desse precedente, o Parlamento Europeu e o Conselho promulgaram a Diretiva nº. 2013/48/EU, regulamentando o direito do acusado de acesso a Advogado em procedimentos criminais e execuções de mandados de detenção europeus, e o direito do preso à comunicação com terceiros e autoridades consulares.

7 SUPRALAT é um acrônimo em língua inglesa, derivado de “Strengthening suspects’ rights in pre-trial proceedings through practice-orientated lawyers’ training” (“Fortalecendo os direitos de suspeitos em procedimentos pré-julgamento pelo treinamento orientado à prática de Advogados”). Esse treinamento foi criado por equipe multidisciplinar de Advogados, criminólogos, psicólogos e educadores vinculados às Universidades de Maastricht, da Antuérpia e de Dublin, além do Hungarian Helsinki Committee, já tendo sido realizado por centenas de Advogados de diversos países (Bélgica, Hungria, Irlanda, Holanda, Escócia etc.). Para maiores informações, ver: www.salduzlawyer.eu

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