Opinião

A Covid-19 e fragilidade do sindicato durante a epidemia

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19 de maio de 2020, 14h26

Os tempos são de incerteza e insegurança. O mundo parou. Um vírus novo (Covid-19), ser invisível, maléfico e mortal, estava a ameaçar — e a ceifar — vidas, do crepúsculo de 2019 -—momento em que apareceu no continente asiático e iniciou sua jornada — até o alvorecer de 2020, quando plantou no mundo a certeza de que, efetivamente, ameaçava a humanidade, deixando uma geração inteira incrédula.

Diante do inimigo desconhecido e sem armas para combatê-lo, seguindo orientação da Organização Mundial de Saúde , os diversos governos declararam estado de emergência de saúde e calamidade pública, com determinação de isolamento social e paralisação de atividades econômicas, exceto as essenciais, como o fizera também o Brasil.

Mesmo frente ao desconhecido e à incerteza era preciso, emergencialmente, poupar vidas ou recuperar a saúde de quem foi atingido pela doença e, também, assegurar condição mínima de sobrevivência à população reclusa.

Imerso nesse mundo atípico o direito positivo, construído para tempos “normais”, não dava conta da realidade vivenciada. Então, para enfrentar o cenário pautado pelo drama humano, foi editada toda uma “legislação de crise”.

Legislação apenas e tão somente para os tempos “anormais”.

Nesse contexto, foi editado o Decreto Legislativo nº 06, de 20.03.2020 e promulgada a Lei nº 13.979, de 06.03.2020, contendo diretrizes para as pessoas poderem enfrentar os tempos de pandemia.

Mas, a só regulação da vida em sociedade não era suficiente, necessário igualmente garantir a subsistência. Não apenas a do cidadão trabalhador com vínculo formal de emprego, mas de todo aquele que perdeu sua fonte de subsistência (autônomo, informal, desempregado, subempregado, chefe de família).

Por isso, com a atenção voltada à sociedade como um todo, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 927, de 22.03.2020, dispondo sobre medidas para o enfrentamento do estado de calamidade pública e da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (COVID-19), entre elas trabalhistas.

Esta, foi seguida pela Medida Provisória nº 936, de 1º.04.2020, instituindo programa emergencial de manutenção do emprego e renda, além de medidas trabalhistas complementares, entre outros textos legais.

Todavia, relativamente às relações de trabalho, um aspecto da “legislação de crise” chamou atenção: a inevitável flexibilização de direitos trabalhistas, como forma de preservar empregos, poderia se dar por meio do acordo individual entre empregado e empregador; ou seja, válido o ato sem a participação do sindicato.

Ao reconhecer a substancial alteração do contrato de trabalho, com permissão de redução de jornada com proporcional redução de salário, ou, sua suspensão, sem intervenção do sindicato, a Medida Provisória nº 927 seria inconstitucional?

Logo, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado a se pronunciar. E a Corte, em sede cautelar, pela maioria de seus Ministros, declarou a conformidade da regra do art. 2º da referida Medida Provisória nº 927 com a ordem constitucional, afastando, assim, a insegurança jurídica que envolveu a questão. Mas, sem antes, o Ministro Relator, na condução do voto vencido, potencializar a insegurança com decisão liminar, sinalizando inconstitucionalidade.

Por ora, e enquanto não julgada em definitivo a ação direta de inconstitucionalidade (ADI 6.363) ou lei dispuser em sentido contrário, válido é o acordo, flexibilizando aspectos trabalhistas, firmado entre empregado e patrão.

O acordo individual somente não prevalece se norma coletiva, pactuada em decorrência dos efeitos da Covid-19, contemplar condições mais benéficas. Neste caso, em razão de princípio basilar do Direito do Trabalho, aplica-se a condição mais vantajosa.

Independentemente, pois, da “legislação de crise” o direito tutelar do trabalho assegura a prevalência da condição mais benéfica. Isso significa — continuará significando — que, objetiva e concretamente, confrontando-se termos de alteração contratual por meio de contrato individual e termos de cláusula normativa firmada em virtude das mesmas razões que levaram o trabalhador aquiescer, o mais vantajoso prevalece.

E assim, a proteção do interesse do trabalhador se dá na maior medida do possível e a relevante função sindical permanece intacta. Não é necessário que o direito pereça por se julgar que o trabalhador, na emergência, não tem condição de saber o que é melhor: flexibilizar ou ficar sem emprego. Se, doravante, for constatado que o sindicato na negociação coletiva angariou melhor condição, está que será aplicada.

A liberdade individual e a liberdade coletiva não sofrem qualquer abalo.

Partindo-se de tais premissas, acredita-se que a questão não é de omissão ou descuido do legislador com a função sindical, que levaria à inconstitucionalidade do art. 2º da Medida Provisória nº 927, mas que querer. Ou seja, para o sindicato agir não necessita de lei que autorize, ao revés, sua função constitucional e o reconhecimento do seu ato típico está — e continua — constitucionalmente assegurado (CF. art. 7º, XXVI; art. 8, III).

Com a liberdade que lhe é própria, ainda que parcial, imune à ingerência em sua organização e atuação (CF. art. 8º, I), o sindicato brasileiro está apto a atuar não só na “questão social”, em busca de melhores condições de trabalho de integrantes da categoria, mas também, a partir do reconhecido status de direito fundamental, a praticar o diálogo e a concertação social.

De fato, a sociedade contemporânea, frente a realidade social, econômica e política, não prescinde da atuação sindical no diálogo e na concertação social.

É certo que, faz algum tempo, em âmbito global, vem o sindicato perdendo vigor de tempos do seu florescimento e consolidação como direito humano de primeira grandeza, ressentido, entre outras causas, pelo ambiente de flexibilização da legislação trabalhista e da tendência de privatização da seguridade social, além da introdução massiva de tecnologias substitutivas de mão-de-obra a gerar desemprego e segmentação da base sindical. E mais, por não se dá conta da realidade que o circunda, reinventando-se para representar outros trabalhadores (p.  ex.: desempregado, subempregado e informal) e não apenas os que detém vínculo formal de trabalho.

No Brasil não é diferente. O sindicato não está imune a tais adversidades. A elas ainda se agrega a anomalia do sistema, na medida em que o ente sindical é livre para agir e se organizar, mas dependente notadamente por manter representação atrelada a base territorial (CF art. 8º, II).

Tal paradoxo inviabiliza a implantação da liberdade ampla e debilita ainda mais o sindicato. Se o ente associativo nasceu sob a aura da liberdade, como assentado na Convenção nº 81, da OIT, será a liberdade com efetiva atuação que, a partir dos resultados colhidos e da proximidade com o representado — e com a sociedade —, que restabelecerá seu protagonismo.

De recordação de tempos de glória não se vive. Imperioso o trabalho com afinco, pois dele advirá a contrapartida, ponto tão sensível: o custeio sindical.

Outro ponto sensível, com a compleição da liberdade, seria a redução, ou mesmo eliminação, do sindicato “por conveniência”, expurgando-se do sistema sindical os denominados sindicatos “pelegos”, “amarelos” ou “inúteis”.

À margem o sindicato — e suas vicissitudes — o certo é que, em meio aos mais de 17.000 sindicatos que se encontram na base de dados da Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia como ativos regulares, existe sindicato representativo, exceção à regra, mas existe.

E o que se vê de mais relevante nesse momento caótico e de crise, acredita-se não ser omissão da “legislação de crise” em relação à vontade coletiva, mas, sim, a falta de liberdade sindical e sua fragilidade.

Debilidade que atinge o sindicato ao ponto de o próprio poder público duvidar de sua capacidade representativa. Foi exatamente o que se testemunhou, ainda que atuação pontual de órgão institucional (MPT-PRT2 NF Nº 0016242020.02.000/NF nº 001846.2020.02.000/1-138) e de decisão monocrática liminar (ACP 1000433-90.2020.5.02.0038), na declarada nulidade de aditivo a convenção coletiva de trabalho, firmado entre sindicatos das categorias profissional e econômico, com o objetivo de preservar empregos.

Segundo a percepção dos agentes públicos envolvidos, por um lado, a assinatura da norma coletiva emergencial não foi precedida de autorização da categoria; por outro, o aditivo era “leonino”.

O que se viu na prática, e em última análise, foi intolerável ingerência na atuação sindical. A vontade coletiva mitigada pelo agente público, com sobreposição de sua vontade sobre a coletiva. Com isso, operando-se total inversão de parâmetros e valores, em que o sindicato é que passa a ser tutelado, pois sem capacidade de discernir o que é melhor e mais apropriado para seus representados.

E dessa forma, assim como o empregado hipossuficiente, o sindicato também precisa de tutela por não saber defender interesses que lhe foram confiados, nem possuir forças para resistir ao patrão.

Nesse ambiente potencialmente caótico e inseguro, a evidenciar, na lúcida percepção de Luís Carlos Robortella e Antônio Galvão Peres, verdadeiro estado de “pandemia e pandemônio”[2], ainda reina a teoria do “oportunismo”.

Esta, seria revelada por aqueles que, ignorando instrumental de hermenêutica constitucional e princípios essenciais à vida em sociedade: ponderação, boa-fé e transparência, acredita que a “legislação de crise” servirá de pretexto para se implantar, em definitivo, reforma trabalhista com retrocesso social.

Nada justifica! E o que fazer?

Imagina-se não haver dúvida quanto à imperiosidade de se voltar à Constituição Federal, porto seguro do Estado Democrático de Direito.

E a partir de sua normatividade, em primeiro lugar, acreditar em seus postulados; observar competências por ela distribuídas, cumprindo cada órgão ou ator social a sua função específica, bem como não esquecer que a Constituição Federal, principiológica como as modernas constituições, trouxe como valor fundante a dignidade humana, colocando ainda trabalho e capital no mesmo patamar, entre outros relevantes princípios.

Depois, partindo-se dessa premissa (realizar a vontade da Constituição), não se afastar da sólida e consistente hermenêutica constitucional que, a partir de princípios instrumentais de interpretação constitucional, sopesar valores, direitos e garantias a fim de determinar, em juízo de ponderação, qual princípio vai prevalecer in concreto, a despeito da importância dos elevados valores em aparente choque.

Assim, diante do inacreditável e repentino mundo novo, reaviva-se a certeza, que vem de há muito, de que a reforma sindical é imprescindível e urgente, a fim de viabilizar a Convenção nº 87, da OIT, condição necessária para o sindicato se refundar e, por óbvio, fortalecer e assumir seu relevante papel na sociedade, tal como concebido pela ordem constitucional.

E mais, diante do estado declarado de calamidade, reconhecer, como lembrou o Ministro Luiz Fux[3], que “a tarefa do Judiciário é fazer escolhas trágicas”, devendo os juízes “ser responsivos ao povo e mensurar as consequências de  suas decisões” ou, ainda, como acentuou o Ministro Ives Gandra Martins da Silva Filho[4], em cenário de COVID-19 e de crise econômica, o desafio da Justiça do Trabalho é “decidir com rapidez e ponderação as demandas que recebe, percebendo que a fragilização não e apenas dos trabalhadores, mas também dos empregadores”.

Enfrentando, pois, objetivamente a questão posta: em qualquer tempo – e com maior razão em tempos “anormais” – os agentes públicos, sem exceção, devem responder às demandas, mensurando o alcance e as consequências de seus atos, inexistindo qualquer base legal para, simplesmente, o Poder Público interferir na função sindical. O ato normativo (acordo ou convenção coletiva de trabalho ou respectivos aditivos) somente perde a validade após a certeza jurídica advinda da coisa julgada que o declare inválido ou nulo. Enquanto essa certeza não se apresentar o ato normativo produz seus efeitos, exceto se a nulidade declarada for com efeito ex tunc, caso em que retroage à época da origem do ato.

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