Opinião

Como evitar violações aos direitos de propriedade intelectual na pandemia

Autor

  • Laura Delgado Duro

    é advogada especialista em Propriedade Intelectual do escritório Busnello e Duro Advogados Associados e mestre em Direito da Propriedade Intelectual (Master in Intellectual Property and Knowledge Management) pela Maastricht University (Holanda).

15 de maio de 2020, 7h04

Enquanto a indústria farmacêutica segue na busca de um tratamento comprovadamente eficaz para combater a pandemia da Covid-19, o Brasil pode (e deve) tomar medidas prévias para garantir acesso a medicamentos e a outras tecnologias de saúde. No entanto, como é possível evitar a violação de patentes de medicamentos? Como lidar com as barreiras de patentes à produção e fornecimento de tratamentos de baixo preço?

Investimento em novos medicamentos
Cada vez que um novo medicamento é lançado no mercado, é preciso passar por diversas etapas de pesquisa e ensaios clínicos antes de ser aprovado pelo órgão competente. O investimento em pesquisa e desenvolvimento de novos fármacos é enorme, demorado, arriscado e, particularmente, requer forte proteção à propriedade intelectual.

Considerando o exponencial crescimento no número de pessoas infectadas pelo vírus, há urgência em encontrar um tratamento eficaz. Nesse contexto, muitas empresas farmacêuticas estudam a utilização de medicamentos já conhecidos e desenvolvidos para o tratamento de outras doenças a fim de tratar pacientes com a Covid-19.

Patentes de segundo uso médico
A maior vantagem em testar compostos já conhecidos, sejam patenteados ou não, para descobrir diferentes usos do mesmo produto é que o processo se torna mais ágil e menos custoso do que conduzir pesquisas para desenvolver compostos inteiramente novos.

O denominado "segundo uso médico" ou "second medical use" ocorre quando se descobre que um remédio conhecido, por exemplo, para tratar hipertensão e problemas cardíacos também seria eficaz para o combater disfunção erétil (como o Viagra).

Ainda que a Lei de Propriedade Industrial brasileira não contenha nenhuma previsão específica quanto ao patenteamento do segundo uso médico, as resoluções e manuais do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) determinam que ele é permitido no país.

Assim, a condição para a concessão de uma patente de segundo uso médico segue as disposições previstas na Lei de Propriedade Industrial, e basta preencher os requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial para que seja patenteável.

Potenciais tratamentos para a Covid-19
Por enquanto, existem evidências de que alguns medicamentos atualmente indicados e comercializados para outras doenças podem ser úteis no tratamento contra a Covid-19. Apesar de ainda não existir um tratamento comprovadamente eficaz, os resultados preliminares de algumas pesquisas parecem ser promissores.

Os seguintes fármacos em fase de testes clínicos têm sido apontados como solução para a Covid-19: 1) Cloroquina, tratamento contra a malária; 2) Remdesivir, desenvolvido para doenças como Mers e Ebola; 3) A combinação de drogas usadas no tratamento para o HIV, como Lopinavir e Ritonavir, e 4) Favipiravir, desenvolvido para tratamento de influenza no Japão; entre outros.

Medicamentos protegidos por patente
Atualmente, alguns desses medicamentos são protegidos por patente ou estão em processo de obtenção de proteção. Por sua vez, outros já entraram em domínio público pois tiveram sua patente expirada, como é o caso da Cloroquina, lançada em 1949.

Em relação aos medicamentos patenteados, aos seus titulares é assegurado o direito de impedir que terceiros, sem seu consentimento, produzam, usem, coloquem à venda, vendam ou importem tal produto. Em outras palavras, o titular da patente detém um monopólio temporário para explorá-la como quiser, podendo evitar que terceiros sem autorização façam uso dela.

Os potenciais problemas em relação à proteção de fármacos para tratamento da Covid-19 por patente são: 1) a criação de barreiras no fornecimento desses medicamentos à população; e 2) o risco de violação de patentes farmacêuticas.

Problema 1: Preços abusivos nos medicamentos
Alguns dos produtos testados no momento já são conhecidos e baratos para produzir, como a Cloroquina, o que indica que seria possível comercializá-los a um preço acessível.

No entanto, é provável que o preço de novos produtos ainda em teste, como o Remdesivir, não seja conhecido até que ele seja lançado para uso, depois de sua aprovação pelo órgão competente. Nesse caso, o problema é que havendo o monopólio de uma empresa sobre o uso de um medicamento eficaz contra a Covid-19, a posição do mercado, em vez dos custos de produção, será fator determinante no preço do medicamento, o que pode inviabilizar o acesso à saúde da população em geral, sobretudo as parcelas mais vulnerabilizadas.

Problema 2: Violação de patentes
A lei de patentes concede aos inventores direitos exclusivos para as novas tecnologias que desenvolvem, como forma de incentivar a invenção. No entanto, as patentes podem impedir que terceiros façam uso dessas invenções, mesmo quando esses usos sejam a solução para interromper infecções e salvar vidas humanas.

Patentes já ameaçaram a saúde pública no passado, e com o coronavírus elas podem causar danos semelhantes. Se houver escassez de suprimento de medicamentos patenteados no mercado, empresas farmacêuticas terceirizadas não poderão produzir os medicamentos sem violar as patentes dos respectivos titulares, arriscando enfrentar processos envolvendo violação de propriedade intelectual.

Solução: Licenças compulsórias de patentes
Para solucionar os iminentes problemas elencados, diversos países, incluindo Israel, Canadá, Alemanha, França, Chile e Equador, já flexibilizaram suas leis de propriedade intelectual a fim de não ficarem reféns do monopólio das empresas farmacêuticas.

Com base no Acordo TRIPS (1994), do qual todos os países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) são signatários, é permitida flexibilização para concessão de licenças compulsórias para medicamentos patenteados. Por meio deste instrumento, o governo do país concedente da patente pode intervir sobre o monopólio de sua exploração, permitindo a produção ou importação de produtos farmacêuticos sem a autorização dos respectivos titulares de patentes.

No âmbito internacional, o artigo 31 do Acordo TRIPS prevê as condições gerais a serem observadas pelos países-membros para justificar a concessão de licença compulsória. No Brasil, por exemplo, o licenciamento compulsório de patentes pode ser implementado a partir de circunstâncias previstas na Lei de Propriedade Industrial (artigos 68 a 74), tais como exercício abusivo dos direitos, abuso do poder econômico, não exploração local, comercialização insatisfatória, emergência nacional e interesse público.

Recentemente, seguindo a ação de outros países, foi proposto no Brasil o Projeto de Lei nº 1.462/2020, que propõe a suspensão temporária de patentes para ampliar o acesso a tecnologias de saúde utilizadas no enfrentamento da Covid-19, com base nas flexibilizações nos casos de emergência nacional e interesse público previstos no artigo 71 da Lei de Propriedade Industrial.

Se aprovado o PL 1.462/2020, acredita-se que a atual crise da Covid-19 poderá ser atenuada, e o país também estará mais preparado no caso de futuras pandemias. Isso porque bastará a declaração de emergência de saúde pública de importância internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) ou a declaração de emergência de saúde pública de importância nacional pelas autoridades nacionais competentes para ensejar, automaticamente, a concessão de licença compulsória.

Conclusão
Se um tratamento universal para a Covid-19, protegido por patente, tornar-se disponível em um futuro próximo, a esperança é de que não sejam criadas barreiras no fornecimento desse medicamento, como o enfrentamento de escassez ou a atribuição de preços abusivos.

De qualquer maneira, à luz dos graves riscos causados à saúde pelo vírus no mundo, esse pode ser um momento apropriado para reduzir o monopólio dos titulares de patentes em benefício do bem comum. Nesse contexto, diversos países, incluindo o Brasil, propuseram reformas legislativas para flexibilizar suas leis para facilitar a concessão de licenças compulsórias. Espera-se que esses novos mecanismos entrem em vigência logo, como forma de proteção da população no contexto da pandemia, prevalecendo o interesse público diante dos direitos de propriedade intelectual.

Autores

  • é advogada especialista em Propriedade Intelectual do escritório Busnello e Duro Advogados Associados e mestre em Direito da Propriedade Intelectual (Master in Intellectual Property and Knowledge Management) pela Maastricht University (Holanda).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!