Opinião

Judiciário decide quem pode ser ministro ou diretor-geral da PF?

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11 de maio de 2020, 19h01

Não. Mas pode decidir quem não pode ser.

Uma das conquistas da Constituição de 88 foi reposicionar o Poder Judiciário na distribuição das funções estatais de julgar, legislar e executar as atividades, embaralhadas durante a ditadura civil-militar. Ao longo da ditadura, o Judiciário sujeitou-se aos limites impostos pelos militares nos atos institucionais e na Lei de Segurança Nacional. O AI-5, ao tempo em que restringiu os poderes do Judiciário, ampliou os do presidente da República. Após o AI-5, os direitos políticos cassados deixaram de se sujeitar ao controle judicial. Para superar a tirania do Executivo e recuperar o que convencionamos chamar de Estado Democrático de Direito, forjado ainda na Revolução Francesa, quando se produziu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a Constituição de 88 resgatou a separação dos poderes que inclui, outrossim, o controle de um poder pelos demais. Sem reservar a nenhum poder atribuições exclusivas, apenas precípuas, a Constituição garantiu a possibilidade de revisão judicial dos atos administrativos.

Está no caput do artigo 37 da CF que a administração pública deverá obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Mesmo os agentes políticos estão sujeitos a referidos princípios. Não há exceção. Tanto que a Constituição prevê, expressamente, no inciso V do artigo 85, que o presidente da República comete crime de responsabilidade quando atenta contra a Constituição e a probidade administrativa.

Não se descuida que probidade é um conceito distante de possuir uma definição precisa. No entanto, há um consenso mínimo social do que seja decoro. Utilizar o cargo com a finalidade de obter vantagem pessoal ou para terceiros, em detrimento do interesse público, é uma ação que ofende a moral média. Tentar o presidente da República usar o seu cargo para obstar o andamento de investigação criminal contra seus filhos pode ser, para alguns, uma ação moralmente válida na esfera privada, mas na esfera pública é uma ação criminosa. Por isso, exceto na parte do mundo em que a res publica foi capturada, há assentimento no sentido de que pretender dificultar uma investigação criminal é uma ação que atenta contra a dignidade da sociedade, portanto, é imoral.

Poder-se-ia argumentar que, no caso específico da indicação de Ramagem para o cargo de diretor-geral da PF, haveria apenas uma suspeita levantada pelo ex-ministro Moro. Mas há fotos, há as falas do próprio presidente da República, há a divulgação de mensagens particulares trocadas e há um inquérito instaurado para apurar as acusações proferidas pelo ex-ministro. Tudo isso milita em desfavor da indicação.

Se causa estranheza o mesmo indicado não poder ocupar o cargo de diretor-geral da Polícia Federal, mas poder ocupar o cargo na Abin, é porque não se percebeu que a imoralidade estava nas razões da indicação, na medida em que houve desvio de finalidade, e não na conduta do indicado. Embora a relação de compadrio não seja o melhor parâmetro para qualificar um gestor, não foi essa relação que viciou o ato de indicação de Ramagem.

Se falta consciência ao detentor do cargo político sobre os limites de sua atuação, especialmente, sobre a distinção entre o que é seu e o que é da sociedade, cabe ao Judiciário declarar a imoralidade daquela conduta que tenta se apropriar do que é de todos. O interesse da sociedade é indisponível.

Por isso, também, não há medida de comparação do caso Ramagem com outros casos em que o Judiciário interveio. Cada caso, como se diz, é um caso. A lógica poderá estar em tratar todos os casos, independentemente de suas idiossincrasias, de forma igual, ou tratar particularmente cada situação. A escolha parece ser particular. Em nenhuma situação, de qualquer sorte, haverá segurança jurídica. Aliás, não existe palavra tão oca de sentido quanto segurança jurídica. Tanto serve para resguardar o direito quanto para ocultar o exercício opressor do poder sobre os direitos.  Segura, de fato, é a certeza de que não há racionalidade nas decisões judiciais. A decisão judicial final do STF será sempre política, afinal cuida-se de uma corte política, e estará carregada, decerto, dos valores e compromissos de quem a profere. A diversidade de decisões judiciais, bem como a discussão que estamos travando comprovam à saciedade que não há interpretação da Constituição que possa ser classificada como isenta ou, de outro giro, apolítica. Politização do Judiciário é o apanágio da manutenção do status quo.

Não vislumbro na decisão do ministro Alexandre de Moraes um ativismo judicial, no sentido pejorativo que a palavra carrega, mas controle de legalidade de um ato. Oportuno recordar que decorre do que designamos ativismo judicial o reconhecimento pelo STF da possibilidade de pesquisas com células-tronco, o reconhecimento da união estável homoafetiva, bem como o direito à herança desses cônjuges.  

Enfim, a judicialização da política não é um fato novo. Desde seu surgimento, e ao longo de sua história, não foram poucas às vezes que o STF foi invocado para tomar partido em disputas políticas, muitas vezes só para legitimar, mediante sua omissão, disputas partidárias.

O que parece ser novo, no contexto da Constituição de 1988, é a entrada na arena de novos atores até então excluídos. Isso incomoda.

Os partidos políticos atuarem no Judiciário em detrimento da Ágora de fato é um problema que deveríamos enfrentar para superar, mas de modo algum retirando a possibilidade de anulação judicial de um ato viciado do presidente da República.

Não reconheço a possibilidade de o Judiciário invadir a esfera de competência do Executivo, mas reconheço que, numa República que se pretende democrática, os poderes estão sujeitos ao controle pelos demais, como previsto na Constituição. Isso quer dizer que também os agentes políticos estão obrigados a respeitar a lei. A prerrogativa constitucional de indicação do presidente da República não é absoluta. Há interesses maiores a serem preservados, como a sobrevivência da sociedade, a democracia e a República.

Por que transigir em favor de uma pseudorracionalidade jurídica?

Talvez a pergunta não seja "pode o Judiciário decidir quem pode ser ministro ou diretor-geral da PF?", mas "a quem as indicações do presidente da República devem servir?".

E, no início e no final, cabe sempre a pergunta, talvez um princípio ordenador da interpretação legal: "a quem estamos servindo quando interpretamos as normas constitucionais?".

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