Opinião

A nova disciplina da prisão preventiva

Autor

  • Antonio Ruiz Filho

    é advogado criminalista presidente da Comissão de Defesa da Democracia e de Prerrogativas da Federação Nacional dos Advogados (FeNAdv). Foi presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) e diretor da Secional paulista da OAB e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

7 de maio de 2020, 16h19

No final de 2019 entrou em vigor a Lei nº 13.964/19 que, alterando o Código Penal, e o seu processo, também impôs nova disciplina às medidas cautelares, especialmente no que se refere à prisão preventiva.

Ao Direito Penal incumbe estabelecer condutas proibidas e as sanções a serem atribuídas aos infratores. A finalidade do Direito Processual Penal é a tutela das liberdades individuais contra os poderes persecutórios do Estado.

Por isso, o processo penal, com apoio constitucional, consagra a paridade de armas, a proibição de utilizar provas ilícitas, o contraditório, a ampla defesa, estabelecendo um complexo de normas que visam a assegurar ao cidadão a oportunidade de se opor à imputação da culpa criminal; trata-se do devido processo legal, que são garantias processuais a serviço da inocência.

Essas balizas, a que todos devem submeter-se, estão atreladas ao conceito de Estado Democrático de Direito, assim reconhecido no preâmbulo da nossa Constituição Federal.

Nesse contexto, já tardava que se fizesse uma reforma relativa às prisões provisórias, hoje estimadas em torno de 40% da população carcerária. Apenas esse dado já era indicativo de que o sistema clamava por urgente reformulação.

A nova redação do art. 282, § 2º, do CPP, deixa claro que a prisão por decisão de ofício deixou de existir, pois o juiz passa a depender de iniciativa das partes ou de representação da autoridade policial.

O art. 311 do CPP também veda a prisão decretada ex officio.

Regra legal nº 1: os juízes, em qualquer hipótese, estão impedidos de mandar prender sem provocação das partes que lhes outorgue essa faculdade.

O § 3º, do art. 282, do CPP, refere que a decretação de medidas cautelares em geral, ressalvados “os casos de urgência e perigo”, “deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional”.

Isto já deveria ser assim, mas, agora, tais exigências estão positivadas na lei, de sorte a inviabilizar decreto prisional que não as adote.

No caso de descumprimento de outras imposições, o § 4º, do art. 282 do CPP, possibilita a prisão preventiva a pedido, apenas “em último caso”.

Regra legal nº 2: as decisões pela prisão preventiva devem conter elementos do caso concreto que justifiquem a aplicação de medida considerada excepcional e, portanto, a ser decretada apenas em último caso.

O § 5º, do artigo 282, do CPP, permite ao juiz que revogue a prisão de ofício ou a substitua por medidas cautelares mais brandas, quando “verificar a falta de motivo para que subsista”. O mesmo dispositivo parece admitir que o juiz volte a decretá-la “se sobrevierem razões que a justifiquem”. Contudo a regra geral das cautelares impõe que haja provação das partes nesse sentido. Caso contrário, o juiz terá de permanecer inerte.

Regra legal nº 3: a prisão deve ser revogada de ofício ou substituída por medidas cautelares mais brandas se deixarem de existir razões que justifiquem a conduta excepcional.

Na sequência, o § 6º, do art. 282, do CPP, condiciona a prisão preventiva, que “somente será determinada” quando não for possível a substituição por outra medida cautelar do art. 319, o que “deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada”.  

O citado dispositivo já trazia essa recomendação, que foi, no entanto, sistematicamente ignorada, sendo necessário tornar expressa a exigência.

Regra legal nº 4: a prisão preventiva será cabível apenas quando não for possível a aplicação de medida diversa, entre aquelas previstas pelo artigo 319 do CPP, fundada em elementos concretos e que possam ser atribuídas por circunstâncias individualmente reconhecidas, de modo a tornar evidente que nada além da prisão é suficiente para acautelar o processo ou a sociedade.

O artigo 283 do CPP, objeto de muita discussão, foi encurtado, mas mantido na essência. Sobre a impossibilidade de prisão para cumprimento de pena, o artigo 313, § 2º, do CPP, afirma: “Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia”.

Neste ponto, inclua-se a prisão decorrente de pronúncia, de modo que a Súmula 21 do STJ[1] tornou-se sem aplicação.

Regra legal nº 5: não existe prisão provisória possível para o cumprimento de pena, real ou disfarçado, nem pode ser decretada como decorrência natural da evolução das fases processuais.

Os artigos 287 e 310 do CPP incluem a audiência de custódia no direito positivo, até aqui prevista apenas por meio de resolução do CNJ[2]. A rápida avaliação do juiz sobre manter o investigado ou acusado preso vem ocasionando a libertação imediata de inúmeras pessoas, que ficariam encarceradas por meses sem necessidade.

Regra legal nº 6: todo preso será apresentado ao juiz competente, em 24 horas, para a realização da audiência de custódia, com o objetivo de verificar a necessidade de manutenção da prisão provisória.

Incluiu-se, no art. 312 do CPP, um novo pressuposto para a prisão preventiva, o “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. O conceito é vago, o que vai dificultar a sua aplicação.

Criou-se o § 2º para o artigo 312 do CPP, cuja redação estabelece que: “a decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos e contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”.

Fato contemporâneo é aquele que se relaciona com o momento da prisão ou subsiste no tempo desde a sua decretação. Assim, acontecimentos pretéritos ou os fatos primitivos que geraram o decreto inicial não são válidos para admitir a prisão cautelar ou a sua manutenção, se os efeitos tiverem cessado ou se esvaído, perdendo a característica de contemporaneidade.

O § 1º, do art. 315, do CPP, repete o binômio “fatos novos ou contemporâneos”.

Regra legal nº 7: o possível infrator, contra quem cabe prisão preventiva, deve oferecer perigo concreto e atual, de maneira que sua liberdade importe em risco provado, para os fins do processo ou para a proteção da paz social.

O caput do art. 315 do CPP impõe que “A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada”, com elementos concretos, os motivos, mediante adequada fundamentação legal.

O novo § 2º, do art. 315, do CPP, reprodução do art. 489 do CPC, traz um rol de obviedades, mas que são frequentemente desatendidas. Os erros ali descritos, se cometidos, invalidam a decisão.

Regra legal nº 8: a decisão que promova mudança do status libertatis deverá ser suficientemente motivada e fundamentada, sob pena de nulidade.

Pelo art. 316 do CPP, permite-se a revogação da prisão preventiva de ofício pelo juiz ao “verificar a falta de motivo para que subsista” (ausência de contemporaneidade). Entretanto, não poderá agir sem provocação das partes para decretar nova prisão, conforme os artigos 282, § 2º, e 311, do CPP.

Regra legal nº 9: o juiz deve revogar a prisão cujos motivos se mostrem insubsistentes, mas não pode tornar a decretá-la de ofício, e nem deixar de expor os motivos concretos e contemporâneos de validação, além de afastar a suficiência de medidas cautelares diversas da prisão.

O parágrafo único do art. 316 do CPP criou regra com a seguinte redação: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.

A revisão do despacho que deu origem à prisão, como se observa, deve ser promovida de ofício, e o descumprimento dessa obrigatória revisão gera a ilegalidade do decreto prisional. 

Cumpre enfatizar que o estabelecimento desse prazo de 90 dias, pela leitura sistemática dos novos dispositivos processuais, impõe “revisão de necessidade” cujo despacho não pode ser fruto do frequente “copia e cola”, novamente observadas todas as orientações do art. 315 do CPP. Decisão assim mantida haverá de ser considerada absolutamente ilegal.

Revisar significa passar em revista, rever, reexaminar todos os elementos antes considerados para o decreto inicial de prisão preventiva.

A partir da excepcionalidade, expressa de forma abundante nos dispositivos da Lei nº 13.963/19, as prisões cautelares finalmente devem ser reduzidas ao mínimo, para que, de uma vez por todas, cessem os abusos, não apenas quanto à utilização, mas também quanto à duração por prazo excessivo.

Diante de tantas exigências legais para justificar um decreto prisional de índole cautelar, não faria o menor sentido permitir que a prorrogação da prisão preventiva para além dos 90 dias — cuja provisoriedade impõe que seja rápida, breve, efêmera, precária —, fosse derivada de simples renovação ou mera ratificação da decisão cautelar anterior.

Nesse ambiente de expressa excepcionalidade, depois de afastada a possibilidade da aplicação do rol de todas as outras medidas cautelares previstas pelo artigo 319 do CPP, a prisão preventiva poderá perdurar por 90 dias; ao final desse prazo deverá ser criteriosamente avaliada ainda de forma mais exigente por se tratar de ato revisional obrigatório.

Essas prisões provisórias que se eternizam no tempo e em tudo se assemelham a cumprimento antecipado de pena sem julgamento definitivo de mérito, agora expressamente proibidos na lei, devem deixar de existir.

É evidente que, depois de tantos anteparos para a decretação da medida de força de especial excepcionalidade, o parágrafo único do art. 316 do CPP remete a 90 dias, naturalmente, o prazo máximo da prisão preventiva a partir de agora. Aliás, durante muito tempo a duração da prisão provisória foi de 81 dias[3]. Ao final desse período, mesmo sem força de lei, a soltura era praticamente imediata.

Com o passar dos anos esse limite temporal foi sendo abandonado e se permitindo prisões provisórias de muitos meses e até de vários anos, o que não se pode mais admitir.

Se a decisão original de prisão preventiva, ante a nova sistemática, há de ser extremamente bem motivada e fundamentada, com o apontamento de fatos concretos de urgência, perigo e contemporaneidade (art. 282, º 3º, 312 e 315, § 1º, do CPP), e, ainda, com os rigores estabelecidos por vários dispositivos de contenção (art. 315, § 2º, I a IV, do CPP), o que se dirá em relação ao despacho que decide pela sua revalidação depois de três meses de duração?

Regra legal nº 10: a prisão preventiva tem prazo certo de 90 dias, devendo sua prorrogação, de caráter excepcionalíssimo, ser obrigatoriamente revisada após esse período e ser mantida apenas diante de circunstâncias ainda mais especiais, mediante o apontamento de motivos concretos e contemporâneos, uma vez mais afastando-se a possibilidade e suficiência de outras cautelas.

Eis o decálogo das novas diretrizes para a prisão preventiva. 

Ainda, o descumprimento dessas novas regras legais, mediante a comprovação do exigido dolo específico, deverão ser enquadradas como crimes de abuso de autoridade (Lei nº 13.869/19), sendo responsabilizado penalmente o juiz que decretar privação da liberdade em manifesto desacordo com as hipóteses legais (art. 9º, caput), ou que, dentro de prazo razoável, deixe de relaxar prisão manifestamente ilegal (art. 9º, I), de substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível (art. 9º, II).

Tudo isso elevará a qualidade da nossa Justiça criminal, que se tornará mais célere e eficiente, em prol da proteção social e do respeito aos direitos individuais.

 


[1] Súmula 21 do STJ: “Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo da instrução”.

[2] Resolução nº 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça: “Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas”.

[3] “(…) A demora na formação de culpa, excedendo os 81 dias, sem motivo dado pela defesa, caracteriza constrangimento ilegal. Habeas deferido.” – STF, HC 78978/PI, Rel. Min. NELSON JOBIM: 09/05/2000.

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  • é advogado criminalista, presidente da Comissão de Defesa da Democracia e de Prerrogativas da Federação Nacional dos Advogados (FeNAdv). Foi presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) e diretor da Secional paulista da OAB e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

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