Opinião

Os perigos da ditadura pelos dados

Autor

  • Rafael Maciel

    é advogado especialista em Direito Digital e Proteção de Dados Pessoais Autor do livro Manual Prático sobre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e professor e também membro da International Association of Privacy Professionals (Iapp).

4 de maio de 2020, 12h50

"Aspirantes a autocratas costumam usar crises econômicas, desastres naturais e, sobretudo, ameaças à segurança guerras, insurreições armadas ou ataques terroristas para justificar medidas antidemocráticas". Nessa passagem do livro Como as Democracias morrem, Steve Levitsky e Daniel Ziblatt [1] poderiam ter incluído a pandemia como outro "inimigo comum" a justificar atos autoritários.

Provavelmente não imaginariam um vírus com impactos sanitários e econômicos como os provocados pela Covid-19. Relevantes a ponto de provocarem uma grande mudança de hábitos, tanto pela gravidade que a doença tem apresentado, com índices crescentes de fatalidades e contaminação, como pela bancarrota generalizada e aumento do desemprego. Diante de tantos danos, não se tem dúvida de que a atual pandemia se tornou o mal a ser combatido, capaz de justificar, aos olhos menos atentos, toda e qualquer invenção legislativa, sobretudo as arbitrárias as quais, em situação comum, poucos ousariam representar.

É o que temos visto no Brasil. O cotidiano jurídico tem sido inundado por Medidas Provisórias e propostas legislativas visando a modificações ou inovações diversas. Não se tem dúvidas de que boa parte são válidas e necessárias ao combate dos males da pandemia, seja em seus aspectos econômicos ou sanitários; outras, todavia, repousam sobre o falso argumento da urgência pandêmica para terem tramitação ligeira ou oportunista e escondem violações a direitos fundamentais, primeiro front prejudicado nesses levantes populistas.

É o que se dá com a Medida Provisória nº 954, de 17 de abril, pela qual o presidente Jair Bolsonaro, fundando-se no estado de calamidade pública, determina a todas empresas de telecomunicação que disponibilizem a "relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas" à Fundação IBGE para fins de produção estatística oficial. Logo de partida constata-se um excesso de dados pessoais a serem disponibilizados. Ora, para que fornecer endereço se essa dita necessidade é para pesquisa remota por conta do isolamento? Para piorar, não há sequer menção a qual tipo de estatística que deverá ser realizada e se ela é fundamental para combate à pandemia, primeiro pressuposto para avaliar o cabimento do compartilhamento de dados pessoais. Tem que haver finalidade específica e para essa, somente podem ser fornecidos dados necessários e adequados para atingi-la.

Os despropósitos não param por aí. Não há na MP qualquer controle previsto para esse tratamento que poderá, inclusive, estar sujeito ao vigilantismo ou uso indevido para envio de mensagens fake com viés eleitoral. Se serão sigilosos, como se dará o controle? Quais medidas foram implementadas para registrar os acessos? A única previsão de proteção prevista na MP é de um enviesado Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais.

A utilização dessa avaliação de impacto deve ser feita anteriormente a qualquer pretensão de tratar os dados, a fim de analisar todos os riscos envolvidos e, inclusive, os impactos aos titulares, sobretudo às suas liberdades individuais. O relatório de impacto não pode servir para o fim pretendido no §2º do artigo 3º da MP: "Divulgar as situações em que os dados foram utilizados". Depois que são utilizados, pouco ou de nada importará saber das suas violações, sem falar que será difícil confiar nesse relatório feito casuisticamente. Até as situações divulgadas por alguns estados para o compartilhamento de dados dito anonimizados o que a rigor não se sujeitariam a tais limitações para fins de constatar aglomerações devem ser precedidas de uma análise prévia a fim de se constatar a impossibilidade de (des)anonimização mediante "esforço razoável".

É claro que para combater a pandemia, por ser questão de saúde pública, o Estado pode utilizar alguns dados pessoais, porém essa permissão não é uma carta em branco para que faça da forma como queira, sem qualquer controle. Os dados de saúde são um bom exemplo: podem ser compartilhados para saber quantos estão contaminados, porém sempre respeitando os indivíduos, sem divulgação desautorizada de seus nomes e limitando o tratamento àqueles dados estritamente necessários.

Agências de proteção de dados pessoais ao redor do mundo têm se manifestado com diretrizes para tais compartilhamentos, pautando pela finalidade e implementação de medidas técnicas e organizacionais de proteção, prestigiando a anonimização. Por aqui, a regra, ao que parece, tem sido o compartilhamento irrestrito, como se aproveitassem da vacatio legis da LGPD ou da própria inércia de não instituir a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Se são ou não medidas com viés antidemocrático, propositais, ingenuidade ou equívoco jurídico o tempo dirá. Enquanto isso, que nossos radares permaneçam atentos, assim como vigilantes nossas instituições.

 


[1]  Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Zahar. Edição do Kindle. 2018, pos. 1730.

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