Processo familiar

Um novo tempo da família revisitada ao ultrapasse da pandemia

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

23 de junho de 2020, 8h00

Depois do fim da grande fome na China, que matou milhões de pessoas em 1961, a introdução da política do filho único para garantir famílias menores reduziu abissalmente a taxa de natalidade; ali se registrando, ano passado, a menor observada nos último setenta anos (10,48 nascimentos a cada mil pessoas) [1].

Quais políticas públicas terá o mundo para suas famílias, ao fim da grande pandemia, quando para além de mortes contadas, as desigualdades sociais serão mais acentuadas e todos terão, como pessoas em dignidade, a fome do absoluto?

Nesse caminho, diversas vertentes paralelas deverão ter novas trilhas. A família, ao depois, continuará a mesma consiga própria? O Estado continuará desprovido de políticas públicas suficientes a melhor provê-la? E como estarão os seus laços sociais com a economia, a protegê-la dos limites morais de mercado?

Impõe-se refletir com Immanuel Kant, na ponderação imediata:

No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. O que tem um preço pode ser substituído por uma coisa equivalente; ao contrário, o que está acima de todo preço, não admitindo, portanto, equivalente, é o que tem uma dignidade [2].

Essa dignidade inconsútil será a palavra-chave para o novo tempo da família revisitada ao ultrapasse da pandemia.

Os maiores interesses protetivos, despertados por uma nova tomada de consciência crítica social indicam que tudo haverá, necessariamente, de ser diferente, e por certo surgirão uma nova cultura pelo bem-estar familiar, uma nova segurança jurídica garantidora, uma nova economia do bem comum e novas leis de suporte. Vejamos:

(i) A Família na família
Este (re)começo terá seu ponto de partida na própria família, quando impende urgente uma reautoanálise de seus integrantes, acerca das readequações vivenciais ao pós-confinamento, de seus dissensos e dos seus interesses pessoais, à devida e exata medida onde devem preponderar as responsabilidades comuns.

1. O “princípio da responsabilidade comum familiar”, induvidosamente, presidirá as relações familiares, potencializando regras do Código Civil que apontam nessa diretiva, a exemplo dos artigos 1.511 (comunhão de vida), 1630 (responsabilidade do poder familiar) e 1.696 (direito e dever de alimentos recíprocos entre pais e filhos e extensivos a todos os ascendentes), e dos institutos jurídicos familistas, como os da paternidade responsável e o do cuidado essencial aos idosos.

Apoios mútuos na experiência de adversidades temporárias, a adaptação aos acontecimentos supervenientes por afetação dos resultados da pandemia, o reequilíbrio de recursos e das necessidades familiares, as intervenções morais e afetivas, contribuirão por este referido princípio, sob a égide da solidariedade, à formação da “família resiliente” ou da “família có-responsável”, que surgirá no novo tempo real.

Quando reconhecido que o coronavirus, durante o confinamento, resgatou a extrema relevância da família, como instituição, revela-se igualmente relevante que esse resgate não deva ser diluído ou prejudicado em tempo do ultrapasse da pandemia. Então, não apenas a melhor doutrina, mas o surgimento de videoclipes colaborativos e os de reflexões diárias em mídias sociais contribuirão, neste sentido, para que a família consolide o seu reencontro consigo mesma. Nesse viés, a indispensável contribuição dos psicólogos e psicanalistas de família e do papel indutor e proativo dos juristas integrantes do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

2. A “geração canguru” ou “geração boomerang” retoma, agora, a sua maior configuração. Nos ciclos da vida familiar, a “síndrome do ninho vazio” – SNV (Carter e McGoldrick) [3], em antecipação da maturidade, tem sido substituída pela chamada “adolescência estendida”, com maior convivência entre pais e filhos, quando cerca de 24% de jovens entre 25 e 34 anos continuam vivendo com seus pais. Precisamente: um a cada quatro pessoas, segundo os indicadores sociais do IBGE (2015). Resultado de mudanças comportamentais, protraindo os casamentos em favor das carreiras profissionais. [4]

A propósito, a adolescência, ganhou sobrevida ou novos limites cronológicos em seis anos, definidos pela Organização Mundial da Saúde com critério etário dos dez aos dezenove anos (adolescents) e pela Organização das Nações Unidas (ONU) entre 15 e 24 anos (youth). [5]

Assim, fenômeno da fase pandêmica, a “geração canguru” (designação dada pelo IBGE em 2013), foi o maior retorno dos filhos maiores aos seus berços de origem. Famílias singles constituídas por solteiros que moram sós se reunificaram às suas famílias nucleares, o ponto do início. No depois, essas configurações não deverão ser, abruptamente, desconstituídas, pelo simples regresso a um “status quo ante” de normalidade, até porque haverá uma “nova normalidade” a ser vivenciada.

Com veemência, prevalecerão as contingências econômicas de muitos que, afastados do mercado de trabalho, pelo aumento do desemprego ou nele prejudicados, pelos baixos ganhos, precisarão de um novo arrimo paterno para a recomposição de um equilíbrio financeiro desejável.

3. Alimentos parentais de circunstâncias episódicas poderão ensejar maiores demandas judiciais. Diferenciados dos alimentos derivados do dever de sustento (art. 1.566, IV, CC), ou dos alimentos educacionais (Súmula 358 do STJ) os alimentos solidários são admitidos pelo art. 1.696 do Código Civil, a qualquer tempo.

Neste sentido, pontifica a jurisprudência do STJ, referindo o ministro Marco Aurélio Bellize:

A obrigação alimentar devida aos filhos transmuda-se do dever de sustento inerente ao poder familiar, com previsão legal no artigo 1566 o Código Civil (CC), para o dever de solidariedade resultante da relação de parentesco, que tem como causa jurídica o vínculo ascendente-descendente e previsão expressa no artigo 1696 do CC.

De efeito, esse elo determinante não se extingue (embora possível seja relativizar a reciprocidade) tornando certo, pelo princípio da solidariedade, que a obrigação alimentar venha ser reclamada daquele que a possa prestar, em cenário do vir a ser necessário, como suporte de ajuda financeira.

Impende perceber uma dimensão sazonal de efeitos tributários, qual a da figura de dependentes temporários, o que reclama urgente tratamento legal na espécie.

(ii) A Família na saúde
1. Jean Tirole, Prêmio Nobel de Economia (2014), em sua obra “Economia do Bem Comum”, recém-lançada no país (abril/2020), trata do tema da medicina preventiva, mediante o reforço do emprego da saúde digital, “ainda uma prima pobre da medicina curativa”, como solução do acesso igualitário aos cuidados médicos. Ele antecipa os problemas que a epidemia evidenciou: “os cuidados médicos, hoje em perigo pela conjunção da inflação dos custos e da fragilidade de nossas finanças públicas” e indica as estratégias de superação [6].

2. Os nossos dados de saúde, à nível pessoal ou familiar, devem ser um patrimônio “real time” para diagnósticos precisos e mais acessíveis em tempo contínuo, cuja coleta poderá ser feita pelos próprios interessados, “através de sensores eventualmente ligados a smartphones”. Implica dizer, com fácil acesso e sem maiores ônus para a população.

3. Lado outro, o uso do sistema da telemedicina foi permitido pela Lei nº 13.989/20, de 15 de abril, no seu espectro mais abrangente (art. 3º), como “o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde” [7]. Regulamentado para seus fins apenas emergenciais; “enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2)”, caso será de tornar-se a telemedicina uma prática permanente, por representar um indicador de maior eficiência em estratégia viável ao melhor acesso à saúde e em efetividade ao disposto pelo art. 196 da CF.

4. A saúde da família deve constituir política prioritária de governo, ao ultrapasse da pandemia, diante das notórias e mortais deficiências do sistema de saúde pública. Quando em abril passado, 50 mil pacientes “não tiveram acesso a diagnóstico e tratamento para o câncer”, cancelando-se cerca de 70% das cirurgias oncológicas, a indicar previsão de aumento de cerca de 20% das mortes, nesse estrito âmbito de enfermidade, de acordo com a SBCO (Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica) [8]; impende lamentar quantas vidas foram perdidas somente por desígnios da fragilidade do sistema.

5. Enquanto isso, a sustentabilidade do direito à saúde continua, flagrantemente, sob os primeiros esforços dos seus próprios destinatários; não se entendendo, em efetividade ao direito fundamental, possam despesas pessoais médicas serem subtraídas das deduções do Imposto de Renda, como defendem alguns, em prejuízo do incentivo.

(iii) A Família na economia
1. As famílias de baixa renda que ganharam maior visibilidade social perante o Poder Público deverão merecer uma nova atenção legislativa. Os aportes financeiros durante a crise devem, em bom rigor, continuar permanentes como medidas impostergáveis através de mecanismos de inclusão social, v.g. a da Renda Mínima e de outros benefícios.

2. Avizinha-se uma nova moldura jurídica de proteção econômica à primeira infância, que servirá para melhor estruturar as famílias, que tenham filhos até seis anos de idade. Neste sentido, o país já possui, com a Lei nº 13.257/2016, de 8 de março, uma das leis mais avançadas do mundo sobre políticas públicas para crianças nessa faixa etária, conhecida como o Marco Legal da Primeira Infância.

Resta implementar os benefícios sociais pertinentes, com tratamento protetivo adequado, notadamente diante daqueles infantes agora colocados em orfandades impostas pela pandemia.

(iv) A Família na ancianidade
1. Os resultados da pandemia demonstram que a idade importa e que pessoas mais velhas estiveram mais presentes na conta da vitimização do vírus. Significa dizer, suscetíveis, pela idade avançada, a infecções destrutivas. O destaque situou-se na população idosa residente em instituições de longa permanência (asilos) onde a propagação do vírus tornou-se mais rápida e letal.

Nesse cenário, importa trabalhar cuidados mais intensivos e o primeiro deles será definir o perfil do idoso em face de suas próprias vulnerabilidades, a partir de suas respostas imunológicas distintas.

2. Lado outro, os créditos consignados lançados em contas de aposentadorias de pessoas idosas, designadamente a atender as deficiências financeiras dos filhos, são incentivados por uma publicidade opressiva e assumidos sob grave comprometimento à qualidade de vida dos devedores, titulares de proventos já insuficientes. Essa realidade subjacente, desafiada no pós-pandemia, exige uma nova postura legislativa acautelatória.

3. Anota-se a aprovação pelo Senado, quinta-feira última (18.06.20), do PLS nº 1.328/20, para a suspensão temporária de pagamentos das prestações das operações de créditos consignados em benefícios previdenciários, enquanto persistir à emergência de saúde pública em decorrência da Covid-19. A suspensão será por cento e vinte (120) dias, ou seja, por quatro parcelas nos contratos das operações de créditos.

É bem a hipótese de presumir que esta próxima Lei terá a eficácia de suspender, a tempo imediato, pelas instituições financeiras, os descontos; tudo a impedir a burocracia em seus fins. A velhice desprotegida acredita nisso.

4. Com identidade de razões, tenha-se a dinâmica dos Conselhos Tutelares de Idosos (art. 7º, Lei nº 10.741/2003, E.I.) como órgãos permanentes e autônomos, não jurisdicionais, à exata similitude dos Conselhos Tutelares da Criança e do Adolescente, previstos no art. 131 da lei de regência (ECA).

(v) A Família “de lege ferenda”
1. Medidas de enfrentamento à violência doméstica tendem a ser editadas, no advento de leis específicas, a exemplo das oferecidas no PL nº 1.291/2020, próximo de sua sanção presidencial.

O novel trato normativo, conduzido pelo projeto, situa-se durante a emergência de saúde pública decorrente da pandemia do coronavírus quando, em bom rigor, as providencias ali contidas deveriam ser implementadas a tempo todo, emergencial ou não.

Bem é certo, como fundamenta o projeto, que essa legislação “se articula com a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 12.015/2009), a Lei de Atendimento obrigatório e Integral a pessoas em situação de violência (Lei 12.845/2013)”. E, também, com o Decreto nº 7.958/2013 que estabeleceu as diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual.

2. Cumpre consolidar um Estatuto Emergencial de Proteção da Família, pelos diversos projetos de lei ora em tramitação, com a presença indispensável do Congresso às percepções de um novo tempo real para a família brasileira. Designadamente, diante do que preconiza o art. 226 § 8º, da Constituição Federal/1988 quanto às obrigações de o Estado assegurar assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram.

É induvidoso que os tempos quarentenais colocam, ao seu ultrapasse, as pessoas e as famílias em inteira e singular prontidão. Logo, evidencia-se que a vida deverá ser vivida a partir das qualidades das famílias, revitalizadas pelos afetos e em proteções maiores.

Incontroverso que “a busca das verdades absolutas é o único caminho a estabelecer o que é verdadeiro”, impende não transigir com as carências sociais das famílias e com omissões detectadas no tecido de suas existências. A família é um valor absoluto. Novos códigos morais e sociais servirão a essa concretude de superações.

Urge, então, pensar com o filósofo francês Jacques Maritain, em sua influente metafísica: o homem tem fome do absoluto.


[1] A política foi abolida em 29.10.2015, depois de mais de trinta anos de sua vigência, com cerca de 90 milhões de filhos únicos na China, denominados “pequenos imperadores”.

[2] KANT, Immanuel. Fundamentos da metafisica dos costumes (1785), II

[3] CARTER, Betty. McGoldrick, Mônica. As mudanças nos ciclos de vida familiar. Uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 2ª ed.,1995.

[4] Pelo censo do IBGE, a “geração canguru” é formada de filhos entre 25 e 29 anos (62%), de 30 a 34 anos (30%) e de 35 a 39 anos (15%).

[5] EISENSTEIN, E. Adolescência: definições, conceitos e critérios. Adolesc. Saúde, 2005; 2 (2): 6-7.

[6] TIROLE, Jean. Economia do bem comum. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, 551 p.; pp. 425-426;

[7] Web: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L13989.htm

[8] Web: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/24/pandemia-cancela-70-das-cirurgias-de-cancer-no-brasil-com-muitos-mortos.htm?

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    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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