Opinião

A legislação brasileira na crise no Direito contratual e obrigacional privado

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15 de junho de 2020, 18h04

Crise no Direito privado contratual e obrigacional é a perturbação extrema e suprema dos equilíbrios obrigacionais e contratuais em determinado período de tempo, em razão de uma desarticulação global da economia nacional, que causa assimetria e holdup entre os parceiros contratuais, com elevação de custos obrigacionais imprevisíveis e a impossibilidade de se cumprir o que fora tratado em tempos de normalidade, com a consequente alteração da ambiência negocial e quebra da base do negócio jurídico, pondo em risco a sobrevivência financeira de um dos contratantes. Tais fatores justificam medidas legislativas supremas, genéricas e objetivas para salvar o contratante mais fraco e evitar as incertezas e altos custos de uma demanda judicial.

Apesar das relações privadas entre empresas e consumidor resultarem, invariavelmente, em relações obrigacionais contratuais e, porquanto, reguladas pelo mercado privado e pela autonomia da vontade, em tempos de crise econômica e financeira nacional, é preciso que se crie legislação temporária para a proteção das partes contratantes mais fracas (empresas de porte financeiro inferior, Empresas endividadas, consumidores, inquilinos etc) quanto aos contratos firmados anteriormente ao período da crise da Covid-19 e cujos efeitos obrigacionais se projetam para os tempos de crise atual.

Para esses contratos, deve haver legislação de proteção contra os efeitos do descumprimento das partes desfavorecidas no contrato, ainda que a legislação civil brasileira tenha mecanismos de proteção, é importante as regras ficarem claras para se evitar a chuva de ações na Justiça e aumento dos custos com defesa dos interesses da parte, já fragilizada, por sua situação financeira declinante.

A legislação temporária da crise, se faz necessária no direito privado contratual e obrigacional, para se evitar o oportunismo contratual causado pelo aumento dos custos do cumprimento da obrigação e dos custos com disputas judiciais em razão da quebra da base da base do negócio jurídico anteriormente firmado, o que chamamos de holdup.

A legislação ordinária da crise também é uma forma de se evitar o capitalismo selvagem, em que o mais forte aniquila o mais fraco. É de se ressaltar que o contrato que fora estudado e pensado em tempos de normalidade, ainda que com os riscos ordinários devidamente calculados (risco da atividade negocial), não pode se transformar numa sentença de morte ou mesmo em uma roleta russa, quando ocorrem eventos imprevisíveis, extraordinários e inevitáveis, ainda que expectativas de direito tenham sido criadas. É a preservação da igualdade negocial sobre a realidade da desigualdade do fato, causada pela desfactualização dos tempos de normalidade.

Sem uma solução legislativa para a crise, as discussões e argumentações sobre o Direito na crise levarão ao inchaço do Judiciário em razão da inexistência de alternativas legislativas com solução temporária e essa discussão nos tribunais de caso a caso, além de custosa para as partes e para o poder público, tornar-se-ia inconveniente e de impossível solução no curto prazo, se arrastando durante anos, mesmo após o término da crise. Ademais, devemos considerar que, no Judiciário, temos juízes positivistas que decidirão de acordo com o Direito positivo posto, diga-se, Direito este pensado e criado para tempos de normalidade, e outros magistrados que se importam mais com os efeitos econômicos e transcendentais de suas decisões junto aos jurisdicionados. Trata-se, na verdade, quando temos a ausência de legislação específica e temporária da crise para regular os descumprimentos, de uma loteria jurídica, que será decidida pelo setor de distribuição dos tribunais. Para se evitar o inchaço do Judiciário, é preciso que a legislação da crise deixe muito claras as formas de solução dos conflitos nos casos de descumprimento de obrigações contratualmente assumidas em tempos de normalidade.

Nos tempos de crise há, inevitavelmente, confronto com o Direito e princípios jurídicos criados em tempos de normalidade, em razão do caráter de urgência que se impôs. Porém, as partes favorecidas pela crise, os oportunistas contratuais, alegam em seu favor que a legislação da crise é um verdadeiro ataque aos direitos adquiridos e ao princípio da confiança contratual.

Segundo Jorge Barcelar Gouveia e Nuno Piçarra [1], temos os argumentos contra legislação da crise que se assentam numa presunção de normalidade ou continuidade que é o seguinte: bondade em manter as situações; consolidação das situações perfeitas (direitos adquiridos, coisa julgada e força normativa do habitual consumado); assimilação entre o real e o previsível; respeito pelas expectativas de direito. Temos, em contrapartida, a argumentação a favor da legislação da crise, com base na argumentação do imprevisto e do extraordinário: mudança dos fatos; imprevisibilidade da mudança e singularidade da mudança.

Contudo, resta claro que a assertiva de que o que valeu antes deve valer depois, são mitigados pelos seguintes argumentos: o Direito em tempos de normalidade somente não será suspenso ou mitigado se o contexto factual de aquisição desse direito não se alterou nos tempos de crise (ceteris paribus e rebus sic stantibus) e que a legislação dos tempos de normalidade deve ser modificada em correspondência com as modificações que ocorram na hipótese fática da aquisição do direito específico (mutatis mutandis) [2].

A mensagem de veto 331 de 10 de junho de 2020, foi a seguinte [3]:

"Capítulo IV, artigos 6º e 7º

DA RESILIÇÃO, RESOLUÇÃO E REVISÃO DOS CONTRATOS

Artigo 6º — As consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no artigo 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.

Artigo 7º  Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário.

§1º  As regras sobre revisão contratual previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo.

§2º  Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários".

Razões dos vetos
"A propositura legislativa, contraria o interesse público, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das obrigações contratuais em situação excepcionais, tais como os institutos da força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva".

De fato a legislação brasileira tem mecanismos de proteção para esses tempos de crise. Os decretos de calamidade pública federal e os decretos de estado de emergência editados pelos Estados e municípios já caracterizam a força maior prevista no artigo 393 e seu parágrafo único do Código Civil Brasileiro. O isolamento social, necessário, ressalte-se, tornou muitas obrigações impossíveis de serem cumpridas e, assim sendo, aplica-se o artigo 248 do Código civil.

O pacto social de convivência e boa-fé, em que não se permite ninguém lesar ninguém, faz com que as cláusulas penais dos contratos sejam mitigadas neste momento e repactuadas em razão da imprevisibilidade (artigo 317 do CCB). O que se espera é que o seu parceiro contratual, seja leal, compreensivo, compassivo e solidário, pois não pode o contrato, assinado em uma outra ambiência social e negocial, tornar-se uma sentença de morte financeira ou econômica (aplica-se aqui para a interpretação dos contratos, também para momentos de crise, os incisos III e V do §1° do artigo 113 do CCB).

O artigo 422 do Código Civil expressa que os parceiros contratuais devem guardar tanto na conclusão como na sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.

E não é só!

Embora o artigo 421-A do CCB expresse que presume-se que os contratos empresariais são paritários e simétricos e que as alocações de riscos neles definidas devem ser respeitadas e preservadas (inciso II do artigo 421-A), também expressa que a revisão contratual poderá ocorrer de maneira excepcional (inciso III do artigo 421-A), justamente o momento em que vivemos da crise da Covid-19.

A redução do valor da parcela (obrigação de pagar) tornou-se possível se extremamente excessiva para a parte com essa obrigação, em razão da perda de receita em virtude do isolamento social e seu efeito cascata. Por certo, os contratos, após firmados, geram expectativa de direito, mas se a obrigação se tornou impossível de cumprir, aplicam-se os artigos 248 c/c 478 c/c 317 todos do CCB, mas se ainda há possibilidade de cumpri-la mediante uma redução proporcional aos impactos financeiros sofridos pela parte com obrigação de pagar, aplicam-se os artigos 479 c/c 480 ambos do CCB, por mais específica que seja a lei de regência do contrato.

Temos também a hipótese do risco de não cumprimento de uma das partes contratantes na obrigação de dar (entregar) coisa certa por perda considerável em seu patrimônio, neste caso, como efeito colateral do isolamento social, pode a outra parte recusar-se a cumprir com a obrigação que lhe incumbe até que o outro contratante satisfaça a obrigação que lhe compete ou lhe dê garantias (artigo 477 do CCB).

Para as pessoas físicas, nas relações de consumo, no que diz respeito ao não cumprimento da obrigação impossível, aplicam-se os artigos 248 c/c 317 c/c 478 do CCB por ser fonte subsidiária do CDC e, também, em razão da teoria do diálogo das fontes. Porém, há permissivo legal no CDC para a revisão dos contratos das prestações que tornarem-se excessivamente onerosas em razão de fatos supervenientes à conclusão do contrato (inciso V do artigo 6° do CDC).

Ademais, as regras de consumo são normas de ordem pública (artigo 1° CDC) e sua política tem por objetivo o atendimento as necessidades do consumidor, a proteção de seus interesses econômicos e a melhoria de sua qualidade de vida, entre outros. Para tanto, exige o código consumerista que haja harmonização de interesses dos participantes das relações de consumo sempre com base na boa-fé e no equilíbrio nas relações entre fornecedores e consumidores (inciso III do artigo 4 do CDC).

Por fim, para os todos os casos em que sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, por mais específica que seja a lei de regência do contrato, isso em razão de sempre o Código Civil ser sua fonte subsidiária, ou mesmo em razão da teoria do diálogo das fontes, ou em razão do que expressa o artigo 5° da LINDB, que determina que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e ás exigências do bem comum.

Contudo, o que se espera não é que TODAS as questões de descumprimento de obrigações causadas pela alteração da ambiência negocial e da quebra da base do negócio jurídico, por questões extraordinárias, imprevisíveis e inevitáveis pelo ser humano, fiquem ao alvedrio de parceiros contratuais oportunistas e que, para defesa de seus interesses, o parceiro contratual que já está com suas forças psicológicas e financeiras prejudicadas pela crise, tenha que suportar os custos da defesa de seus interesses no judiciário com a incerteza de sucesso, vez que, se sua ação for distribuída para um juiz positivista, que adota a teoria da "santidade dos contratos" (pacta sunt servanda) e que entende que todas essas mazelas estão contidas no risco da atividade empresarial, o contrato que fora firmado para ser um bom negócio se tornou, na verdade, em uma sentença de morte financeira. Para se evitar que tal ocorra, é que precisamos ter uma legislação de crise para o direito privado obrigacional e contratual, objetiva e dirigida para o descumprimento de obrigações como forma de proteção do holdup.

 


[1] GOUVEIA, Jorge Barcelar e PIÇARRA. Nuno. A Crise e o Direito. Almedina.2013.

[2] Esse dinamismo da mudança e a guerra dos opostos foi bem definida por Heráclito que, com respeito ao dinamismo das mudanças, Heráclito de Éfeso, nos ensina que tudo é movimento e que nada pode permanecer parado, “tudo flui”, “tudo se move” exceto o próprio movimento. Para Heráclito, a mudança que acontece em todas as coisas é uma alternância entre contrários o que nominou de guerra dos opostos.

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