Opinião

Entre o impeachment e a ditadura — Parte 1

Autor

  • Sérgio Monteiro Medeiros

    é mestre em Ciências Jurídicas (área de concentração: Direito Econômico) pela UFPB procurador regional da República (MPF/PRR3ª) e ex-procurador regional eleitoral em São Paulo (biênio 2019/2021).

9 de junho de 2020, 9h06

No último dia 31, pudemos assistir pela televisão à chegada do presidente da República, de helicóptero [1], à Praça dos Três Poderes, a fim de prestigiar mais uma manifestação pública antidemocrática, em defesa do fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, mediante intervenção das Forças Armadas (FFAA). Depois o presidente montou um cavalo da Polícia Militar do Distrito Federal, instituição recentemente agraciada com um aumento de remuneração, e desfilou por ruas de Brasília, numa imagem que muitos associaram ao simbólico desfile do general Newton Cruz, no ano de 1983, no apagar das luzes da ditadura militar, uma semana antes da votação da Emenda Dante de Oliveira, quando João Figueiredo decretou estado de emergência no Distrito Federal e entorno a fim de intimidar o Congresso Nacional [2].

Em síntese, como vem sendo reiteradamente demonstrado, os manifestantes defendem um golpe de Estado, como apontam algumas faixas, com o presidente da República mantido no poder, isto é, querem a concretização daquele autogolpe que o vice-presidente Hamilton Mourão já cogitava na campanha de 2018 [3].

O presidente revela, verbaliza até, seu claro incômodo, inconformismo, com sucessivas decisões exaradas pelo STF, prenunciando uma crise [4]. Mas qual crise seria essa? É preciso ler os sinais. Seu filho "03", o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que já afirmou que para fechar o STF bastariam um cabo e um soldado [5] e defendeu a eventual "volta do AI-5" [6], agora fala que um "momento de ruptura" já não é questão de "se", mas de "quando", e para isso advoga a necessidade da adoção de "medida enérgica" pelo pai [7].

Ives Gandra Martins vem defendendo a "intervenção das Forças Armadas para pacificação entre os Poderes". Fê-lo em artigo publicado na ConJur [8] e voltou a fazê-lo em entrevista compartilhada [9] pelo presidente, que parece ter simpatizado com a ideia, assim denotando uma possível "medida enérgica", tal como sinalizado pelo seu filho.

Entrementes, inexiste, não se pode extrair do artigo 142 [10] da Carta de Direitos esse "poder morador" dos Poderes da República que se pretende atribuir às Forças Armadas. Poder moderador tem cheiro de naftalina, de fato existiu, mas era cometido ao imperador, lá na longínqua Constituição do Império, de 1824. A atuação voltada à garantia dos poderes constitucionais, prevista no artigo 142 da CF/1988, não pode jamais ser vista como possibilidade de coerção de um Poder da República em desfavor de outro, como estão pretendendo alguns, pois, como está na Constituição, trata-se não de uma intervenção, mas, sim, de uma atuação em favor, de conformidade, subordinada, dentro dos limites constitucionais, e não para derrubar o Estado de Direito, mas em sua defesa. A garantia da lei e da ordem não é posta sem legítimos pressupostos e perfeitamente delimitada, não permite que, ao seu alvedrio, um dos Poderes a utilize para derrubar os demais. A importância e a respeitabilidade das FFAA não lhes confere a natureza de Poder da República [11]. São, isto sim, como está expresso no texto constitucional, "instituições", necessárias, relevantes, como tantas outras que existem numa República, mas todas elas submetidas, justamente, aos Poderes da República, só podendo atuar conforme o figurino constitucional, estatuidor de um Estado democrático de Direito. O sistema de freios e contrapesos constringe as funções dos Três Poderes e isso não está sendo compreendido, ou aceito, quiçá por um lamentável saudosismo de regimes autoritários por pequena parcela da população e pelo Poder Executivo.

Mas juristas defenderem medidas, e até desenharem ordenamentos jurídicos inteiros, dando integral suporte a regimes autocráticos, não é novidade alguma. Foi assim na ditadura brasileira de 1964-1985, assim como nas atrocidades perpetradas pelo Terceiro Reich. Hannah Arendt demonstrou bem em seu "Eichmann em Jerusalém" [12], livro em que narra e analisa, sob os prismas filosófico, humano e jurídico, a prisão e o julgamento do ex-oficial nazista SS Otto Adolf Eichmann, que ele não se considerava de maneira nenhuma responsável pela sua decisiva participação na organização do encaminhamento de judeus rumo à solução final [13], uma vez que seria um mero oficial cumprindo ordens superiores, lastreadas no ordenamento jurídico. Ou seja, aquele ordenamento jurídico respaldava a eliminação de milhões de inocentes, dando-lhe ares de "legalidade" e, assim, promovendo a banalização do mal. "Legal", porém escancaradamente ilegítimo, vale frisar.

Deveras, o absurdo do momento que estamos atravessando é tão pronunciado que tem levado ministros do STF [14,] o procurador-geral da República [15], a OAB [16], inúmeros juristas [17] [18] e até a mesa da Câmara dos Deputados [19] a terem que explicar o óbvio: não existe autorização constitucional a uma intervenção militar destinada a "arbitrar", "moderar" uma fricção entre os Poderes. Isso só era válido lá nos tempos da ditadura militar, época em que a caneta do presidente tinha "tinta suficiente" para fazer e desfazer a seu bel prazer, exercitando a sua "autoridade máxima", como qualificou o ministro-chefe do GSI do presidente da República [20]. O general Augusto Heleno mostra-se aferrado a outro tempo, em que, ali, sim, generais sem farda como ele, no exercício da presidência da República, exercitavam esse poder ilimitado. Em tempos constitucionais isso não existe, não encontra espaço na Lei Maior, mas a incapacidade do Executivo de se submeter às regras postas é reafirmada a todo momento, seja pelo próprio presidente, seja por algum de seus filhos ou de seus apoiadores [21].

Continua na Parte 2.

 


[1] A derrocada da democracia contraria o público interesse, sendo a participação nesses atos uma realização pessoal, donde se percebe o claro desvirtuamento do uso de helicóptero oficial. Necessária mais atenção ao que prescreve a Lei nº 8.429/1992:

Artigo 9°. Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no artigo 1° desta lei, e notadamente

(…)

XII – usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no artigo 1° desta lei.

[10] CF, Artigo 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

[11] CF, Artigo 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

[12] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. 1ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, 344 p.

[13] Contorno jurídico dado pelo nazismo para tratar o aprisionamento e extermínio de judeus em campos de concentração.

[14] Entrevista com o ministro Gilmar Mendes. Disponível em: <https://jovempan.com.br/programas/jornal-da-manha/gilmar-mendes-constituicao-intervencao-militar.html>. Acesso em: 5.6.2020.

[17] Artigo de Lenio Luiz Streck. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mai-07/senso-incomum-interpretacoes-equivocadas-intervencao-militar>. Acesso em: 5.6.2020.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!