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O procurador cordial: quando a atuação pública é condicionada por afetos privados

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8 de junho de 2020, 11h13

Em momentos de crise é de bom conselho refugiar-se nos clássicos. No canônico ensaio “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, em especial no capítulo V, “O homem cordial”, o notável historiador brasileiro, num texto curto, mas largo nos seus ensinamentos, refletia na década de 30 (a primeira edição é de 1936) sobre as dificuldades de se implementar uma ordem impessoal num país tão marcado pela força do patriarcado e pela vida forjada no ambiente privado. Daí o seu insight sobre o "homem cordial", aquele que age na vida pública condicionado pelos afetos da vida privada.

Arrancado da velha ordem social, tem ele enorme dificuldade de agir de modo imparcial e objetivo, preso que está às relações de caráter pessoal que formaram seu ser. O autor, no entanto, admitia que com a progressiva urbanização da vida social no Brasil o conceito seria superado, dizendo que "o homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer onde ainda não desapareceu de todo".

A esperança algo recalcitrante de Sérgio Buarque, timbrada no emprego do advérbio "provavelmente", tinha razão de ser. Como mostrou João Cezar de Castro Rocha, o conceito do "homem cordial" parece estar impregnado na história social do país [1].

É, aliás, o que a realidade mostra. Uma rápida consulta à jurisprudência de direito público nos tribunais brasileiros não desmentirá que o traço da impessoalidade não é efetivamente uma regra assentada entre nós.

Bem por isso foi preciso inscrever na CF um princípio que deveria ser intuitivo: a administração pública deve reger-se pelo princípio da impessoalidade (art. 37). O "homem cordial", na verdade, é um clássico nacional.

Essas considerações me vieram à cabeça à guisa da crise democrática que vivemos. Nunca antes neste país se pôs tanto em dúvida o modelo de Estado Democrático de Direito inscrito na CF de 1988. Nunca antes a Constituição Cidadã, que almejou acolher a todos e a romper com o passado de arbítrio, foi tão sistematicamente atacada por seus detratores. Desde então, nunca foi tão imprescindível a defesa do regime democrático.

De tantos exemplos, fico num que interessa de perto ao Ministério Público: a lista tríplice para indicação do Procurador-Geral da República. Único ramo do Ministério Público brasileiro a não possuir no direito positivo a regra da lista tríplice, o Ministério Público Federal contava com o costume constitucional dos últimos 5 (cinco) presidentes da República de consagrar nomes da lista emanada da associação de classe dos procuradores da República. Esse mecanismo ingressava no patrimônio constitucional do direito brasileiro.

O atual presidente, entretanto, não respeitou e quebrou a tradição constitucional. A lista tríplice, como qualquer ferramenta da democracia, não instala o reino da impessoalidade nas instituições — ela, na verdade, possui problemas —, mas sem a lista o ambiente institucional degenera. O Ministério Público como instituição do Estado deve manter uma respeitosa distância de todos os poderes, porque é da sua natureza defrontar-se com eles. É por isso que o constituinte cercou a instituição de prerrogativas análogas à da magistratura.

É necessário lembrar, ainda, que a indicação de um procurador-geral por um presidente da República traduz-se na escolha da única autoridade pública com poder para, eventualmente, denunciar criminalmente o próprio presidente perante o Supremo Tribunal Federal, em caso de delito comum. Isso não é pouco e ilustra bem os cuidados que o sistema constitucional deveria ter com esse relacionamento.

Embora o Senado funcione no complexo ato de nomeação do PGR, sua atuação ocorre apenas quando o chefe do executivo já exerceu sua escolha, ainda que sujeita à sabatina senatorial. Insisto nisso: a ideia da lista tríplice está em limitar o poder personalíssimo da autoridade com prerrogativa de indicação desde o início do processo, forçando, desse modo, que a inevitável relação entre a autoridade e o candidato se desenrole no ambiente mais institucional possível.

Mas dizia eu que, sem a lista tríplice, o quadro institucional piora. Com efeito. A ideia de institucionalidade é afetada quando a interlocução se estabelece com o indivíduo, e não com o coletivo, podendo até mesmo ocorrer que o eventual candidato represente, quando muito, a si próprio. Mais do que isso, a quebra do costume implicou num verdadeiro retrocesso constitucional, como reconhecido por órgão do Ministério Público Federal:

A lista tríplice para a escolha do Procurador-Geral da República pode ser vista como um desses passos rumo à consolidação e ao reforço do Estado Democrático de Direito. Portanto, a sua abrupta supressão, sem a inserção de um outro sistema mais efetivo para equilibrar os pesos e contrapesos dos critérios ideológicos e políticos-partidários que podem nortear o presidente da República na nomeação do Procurador-Geral da República, é uma medida regressiva na afirmação dos direitos fundamentais. Nesse caso, sua inconstitucionalidade seria manifesta [2]

Dando como certa a prefiguração do "homem cordial" e a suas manifestações entre nós, o não acatamento da lista tríplice estimula a prevalência de relação forjada no campo do pessoal, do afeto, do subjetivismo, altamente prejudicial à impessoalidade e à democracia, e que pode atingir, em última análise, a própria honorabilidade de um órgão de Estado que, por dever de ofício constitucional, incumbe a defesa do regime democrático. Procurador cordial não combina com a Constituição Federal de 1988.


[1] Raízes do Brasil, Companhia das Letras, edição crítica, “Um Conceito ou um baixo contínuo? Venturas e Desventuras do Homem Cordial”, 2016.

[2] Parecer do MPF na ação popular 5002921-21.2020.4.03.0000, em tramitação perante Justiça Federal de São Paulo

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