Opinião

Mudança em contribuição previdenciária corrige tributação e traz alívio fiscal

Autor

  • Jorge Roque

    é advogado do escritório Godoi & Zambo Advogados Associados mestre em Direito Fiscal pela Universidade de Coimbra especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e pós-graduado em Planejamento Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET/SP).

6 de junho de 2020, 6h35

A matriz de incidência da contribuição previdenciária, a cargo das empresas, está prevista no artigo 195, I, "a", da Constituição Federal e no artigo 22, I e II, da Lei nº 8.212/91, tendo como base de cálculo a remuneração e demais rendimentos pagos ou creditados aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços. Remuneração e rendimento, para existirem, implicam necessariamente a identificação de um ganho econômico por parte de quem os recebe.

Ocorre que parte do montante "recebida" pelos trabalhadores em decorrência da relação de trabalho já é predestinada ao pagamento da contribuição previdenciária (INSS) e do imposto sobre a renda retido na fonte (IRRF) por eles devidos à União, cujos tributos são retidos e recolhidos pelo empregador direto ao Fisco, sem que os trabalhadores possam usufruir de tais valores.

Sendo assim, surge a questão de saber se os respectivos montantes de INSS e IRRF ensejariam algum ganho econômico ao trabalhador que pudessem caracterizá-los como remuneração ou rendimento, pois, caso contrário, não podem integrar a base de cálculo da contribuição previdenciária devida pelo empregador.

Abstraindo todo o emaranhado jurídico (manicômio jurídico, nas palavras de Alfredo Augusto Becker) e voltando à atenção ao que realmente interessa, a realidade fática como ela é, entende-se que o montante correspondente ao INSS e IRRF retidos na fonte não são ganho econômico do empregado, mas da União Federal, que, por força de lei, já detém a sua titularidade antes mesmo de a suposta remuneração existir.

Nesse sentido, vale rememorar o excerto do ministro Ricardo Lewandowski no RE 574.706/PR, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, sob o fundamento de que, embora o montante do imposto ingresse na contabilidade da empresa, isso acontece apenas em caráter transitório, já que o respectivo valor é condicionado, desde o início, a repasse ao Fisco, não se tratando de receita (ganho econômico) da sociedade empresária.

Disse o eminente ministro: "O Direito Tributário, como outros ramos do Direito, não pode haurir os seus conceitos a partir de uma plataforma metafísica. O Direito é vida. O Direito precisa ser compreendido pelo homem comum, pela sociedade, pelos destinatários de seus dispositivos. É necessário compreender o conceito de faturamento tal como fazem os comerciantes e as empresas, que precisam recolher os tributos correspondentes".

De fato, somente em um universo metafísico um empregado realmente acreditaria que obteve "ganho econômico" ao receber valores já condicionados ao pagamento de tributos (INSS e IRRF). O saldo dessa balança é zero. Ou seja, o que, somente a princípio, poderia revelar um acréscimo patrimonial esvaziou-se antes mesmo de sê-lo, pois a quantia já estava "carimbada" para repasse à União Federal, por força de lei. Não há, assim, como admitir que o trabalhador tenha tido, por qualquer lapso de tempo que fosse, a disponibilidade jurídica sobre os valores do INSS e IRRF.

A ausência de ganho econômico nessa situação ainda é mais evidente do que naquela que foi objeto do RE 574.706/PR, pois, ao contrário do valor do ICMS que ingressa em caráter temporário no caixa da empresa, os valores do INSS e do IRRF sequer transitam na conta do trabalhador, uma vez que a empresa efetua a retenção e o seu recolhimento direto ao Fisco.

Em outras palavras, inexiste também disponibilidade econômica no caso sob análise. Ora, sem disponibilidade jurídica e econômica, não há que se falar em remuneração ou rendimento, à luz do artigo 43 do Código Tributário Nacional, do artigo 22, I e II, da Lei nº 8.212 e do artigo 195, I, "a", da Constituição. Portanto, os valores correspondentes aos descontos do INSS e IRRF não podem compor a base de cálculo da contribuição previdenciária patronal, já havendo decisão judicial nesse sentido, a exemplo da sentença proferida pela 13ª Vara Federal de Minas Gerais no Processo nº 1008208-07.2018.4.01.3800.

O verdadeiro impacto do RE 574.706/PR: minirreforma tributária
Muito embora, a nosso ver, tal interpretação seja a mais correta, é certo que ela pode sofrer alguma resistência nos aplicadores do Direito, principalmente no Poder Judiciário. Não é simples se admitir a incidência da contribuição previdenciária sobre o "salário líquido", enquanto a regra sempre se deu sobre o "salário bruto". Assim como foi difícil aos juízes decidir finalmente excluir o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, após décadas de tributação indevida.

Tal resistência se justifica na medida em que ainda persiste uma certa dificuldade do Poder Judiciário, de uma maneira geral, em reconhecer que o RE 574.706/PR implementou uma "minirreforma tributária" no ordenamento jurídico brasileiro. Enquanto a verdadeira reforma ainda tramita no Congresso Nacional, o STF, no referido julgamento em repercussão geral, decidiu simplificar em parte a tributação no Brasil. Ocorre que, mesmo após três anos de seu julgamento, nem todos absorveram a mudança promovida pela corte.

O RE 574.706 é um divisor de águas, sendo certo que, a partir dele, não se pode mais pretender tributar riquezas que só existem no imaginário do legislador, que não revelam ganho econômico algum para o contribuinte, considerando-se a realidade fática envolvida.

Felizmente, tal conclusão vem sendo cada vez mais aceita pelo Judiciário, ainda que de forma lenta e gradual. Tribunais, que antes não admitiam a exclusão de um tributo da base de cálculo de outro (ou do mesmo) tributo, estão realinhando o seu entendimento. A ratio decidendi do RE 574.706 já é aplicada em diversas ocasiões, não só para a correta definição da base de cálculo do PIS e da Cofins, mas também para aquela da CPRB, IRPJ, CSLL etc. A exclusão não tem se limitado ao ICMS, mas também vem abrangendo o ISS, sendo inúmeras as decisões da Justiça Federal de São Paulo que excluem o próprio PIS e a Cofins de suas bases de cálculo, existindo precedentes nesse sentido também no Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

É um tanto óbvio afirmar que tributo não deve incidir sobre tributo, mas para alguns, data vênia, ainda existe o apreço pelo sistema a quo. Ocorre que o passado, somente na aparência, é mais seguro, o que acaba impedindo o julgador, certamente de forma não proposital, de promover a necessária inovação e evolução do Direito e da sociedade.

Crise econômica da Covid-19
Ademais, o cenário de crise econômica da Covid-19, cuja recessão já se está anunciando, impõe que não esqueçamos a necessidade de se conferir mais justiça ao sistema fiscal, principalmente em se tratando de contribuição previdenciária que incide sobre a folha de salários mesmo que a empresa não tenha tido faturamento algum.

Portanto, o reconhecimento da não incidência da contribuição previdenciária patronal sobre os descontos de INSS e IRRF retidos dos empregados não apenas corrige uma tributação defeituosa, numa situação em que inexiste ganho econômico do empregado, como também traz alívio fiscal necessário para que as empresas enfrentem o revés econômico e mantenham a geração de emprego e renda, alavancando gradualmente a economia para, em um segundo momento, ter-se também o necessário aumento da arrecadação tributária da União, bem como dos Estados e municípios.

Autores

  • é advogado em São Paulo, bacharel pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM-SP), pós-graduado em Planejamento Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

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