Opinião

Quando o que se lê é precisamente o que se lê

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3 de junho de 2020, 15h04

O breve texto que me proponho a escrever toca no tema da interpretação. É evidente que não tenho a pretensão de tratar de temática tão desafiadora, mesmo porque gastaria folhas e mais folhas…

De arrancada, serei curto e direto: há freios no ato de interpretar [1]. Diante de uma palavra ou expressão, não há um horizonte infinito de possibilidades ao dispor do intérprete. Na maioria dos casos, o que se lê é o que é (ou deveria ser). Simples assim. Complexo na prática.

Vamos ao Código de Processo Penal:

"Artigo 212  As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.      

Parágrafo único  Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição".

A redação do artigo foi dada pela Lei 11.690, que é de 2008. Antes, o julgador era quem fazia primeiro as perguntas para a testemunha. A nova redação, especialmente o parágrafo único, não deixa dúvidas: o julgador poderá complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos.

A palavra "complementar" é clara o bastante no sentido de que o julgador não pergunta primeiro, porque a atividade de complementação exige um ato anterior incompleto. Além disso, o parágrafo único também fala em pontos não esclarecidos. Se o julgador formula as perguntas antes das partes, não faz o menor sentido a autorização para complementar o que não foi esclarecido!

Então, repito, não há como fugir: no processo penal, após a Lei 11.690, o julgador deve perguntar ao final.

Apesar disso, parte da doutrina [2] continuou a defender que o julgador poderia perguntar antes das partes. No Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a inobservância do artigo 212 acarreta nulidade relativa, exigindo-se, portanto, a demonstração do prejuízo (AgRg no REsp 1543600/RS); o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 114512, foi na mesma linha: mudou, mas a nulidade, para ser reconhecida, depende do prejuízo pas de nullité sans grief.

O artigo 212 deve ser aplicado tal como se lê. Porque:

a) Em primeiro lugar, a previsão não é inconstitucional. Longe disso. O espaço do julgador não foi rebaixado com a modificação e ele não se tornou um mero espectador no processo penal. Entretanto, as medidas que tiram do julgador o protagonismo na gestão probatória estão afinadas com a Constituição da República e o sistema acusatório;

b) Em segundo, o julgador pode, sim, fazer perguntas proibição nesse sentido seria ilegítima , mas ao final, se ainda restar alguma dúvida a ser dirimida. O julgador não está obrigado a decidir na dúvida;

c) Em terceiro, talvez um argumento de ordem prática possa ser útil. Algumas testemunhas são arroladas para falar sobre fatos pontuais ou sobre a pessoa do acusado (testemunha abonatória, de antecedente ou de beatificação). Assim, é muito mais lógico, racional e econômico (economia de tempo) que o responsável pela indicação pergunte primeiro;

d) Em quarto, o artigo 3º-A do CPP, na nova redação dada pelo chamado Pacote Anticrime, ficou expresso que o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. O referido artigo orienta que o artigo 212 deve ser aplicado da forma como se lê;

e) Em quinto, a questão da nulidade relativa, pela inobservância do artigo 212 do CPP, reconhecida pelos tribunais superiores, encerra problemas. Como demonstrar o prejuízo? Se o julgador perguntar primeiro e o sujeito for condenado, estará demonstrado o prejuízo? Deverá a parte provar que não faria a pergunta que foi feita pelo julgador? Nesse contexto, é certo que o reconhecimento da nulidade relativa não traz nenhum conforto, pois na grande maioria dos casos é impossível demonstrar o prejuízo.

Aproveitando o espaço, chamo a atenção para outro ponto muito importante, ainda em aberto. Parte da jurisprudência entende que a audiência de instrução pode ser realizada sem o Ministério Público, desde que este tenha sido intimado (STJ, AgRg no REsp 1860108/AM, publicado no recente 4 de maio; REsp 1468714/RS). O entendimento já recebe muitas críticas, na medida em que o julgador acaba por exercer um protagonismo na gestão da prova. Pensemos: o promotor de Justiça não comparece. O julgador passa a palavra à defesa para iniciar as perguntas às testemunhas arroladas na denúncia. Estrategicamente, a defesa diz que não tem perguntas a fazer. A bola é passada ao julgador. E aí? Se o julgador fizer perguntas, não estará a substituir a atuação probatória da acusação? Não estariam violados os artigos 3º-A e 212 do CPP?

Já partindo para o fecho, faço mais uma indagação. Agora está expresso no artigo 3º-A que o processo penal tem estrutura acusatória. De forma muito simplificada, significa reconhecer que dentro do processo cada um deve respeitar o seu lugar: há quem acusa, quem defende e quem julga. Se assim o é, se na ação penal de iniciativa pública o Ministério Público pede a absolvição ou seja, a pretensão acusatória foi retirada por quem a deflagrou , o acusado pode ser condenado? O artigo 385 do CPP responde que sim, mas a resposta é compatível com a Constituição? E com a estrutura acusatória?

Deixarei as perguntas provocativas para os estimados leitores. Se me permitem uma dica: as respostas devem partir da Constituição da República.

 


[1] O professor Lênio Luiz Streck, que escreve aqui na ConJur a imperdível coluna Senso Incomum, tem insistido nisso. Conferir, nesse sentido, o texto "Por que é tão difícil cumprir a letra da lei? O Caso do artigo 212 do CPP" – https://www.conjur.com.br/2020-abr-30/senso-incomum-tao-dificil-cumprir-letra-lei-art-212-cpp#author

[2] Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 479-480.

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