Opinião

A responsabilização do investidor-anjo em instrumentos de dívida conversível

Autor

  • Graziela Toledo Bezerra

    é advogada na área de Direito Empresarial com foco em contratos empresariais Direito Societário e venture capital do escritório Machado Nunes pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP).

2 de junho de 2020, 16h20

Entende-se por startup o modelo de negócio repetível e escalável que tem como objetivo trazer soluções inovadoras para necessidades do mercado [1]. De acordo com Felipe Matos [2], startup é uma empresa com alto potencial de crescimento, mas que precisa de investidores de risco para acelerar esse crescimento. As fases de maturação da startup podem ser resumidas em seed stage, early stage e IPO.

Para cada fase de maturação da há uma categoria de investimento relacionado. Para fins do presente artigo, vamos nos centralizar nos investimentos-anjo, que ocorrem no early stage da startup.

O investimento-anjo pode ser definido como o aporte de capital realizado por grupo de investidores, pessoas físicas ou jurídicas, realizado com capital próprio e destinado a empresas ainda em estágio inicial de maturação [3], em troca de promessa de equity (participação no cap table da empresa), com tíquetes médios que variam entre R$ 10 mil e R$ 1 milhão. Ademais, o investimento-anjo também tem como característica o apoio e a orientação dos empreendedores, realizados pelos investidores-anjos, que geralmente são executivos com vasta experiência de mercado [4].

Nos últimos anos, esse formato de investimento viu grande crescimento não apenas no Brasil, como também no exterior, como afirmam os dados disponibilizados pela Associação Brasileira de Startups ABstartups [5]. De acordo com a ABstartups, até o ano de 2017, 9,32% dos investimentos em startups ocorreram por meio de investimento-anjo, 4,29% por meio de aceleradoras do ecossistema e 1,39% por meio de venture capital.

O cenário de investimentos em empresas em fase inicial tem avançado, tendo em vista a baixa rentabilidade da renda fixa e a alta volatilidade do mercado de ações global. Ademais, nos últimos anos temos visto grande agitação do mercado de desenvolvimento de startups, haja vista o avanço tecnológico e a necessidade pujante de desenvolvimento de soluções para nossa sociedade.

Do ponto de vista das startups, considerando que estas se encontram em fase inicial de desenvolvimento e, portanto, não dispõem de capital para alavancagem de seus negócios, o investimento-anjo é a forma mais favorável para alcançar o aporte de capitais, dado que geralmente as condições comerciais são muito mais vantajosas do que a aquisição de valores junto a bancos e financiadoras.

O intuito do investidor não é participar do desenvolvimento das ideias, formulação de produtos ou estratégia da empresa investida, mas fomentá-la em um estágio inicial, permitindo a comercialização futura e vantajosa da empresa, que lhe possibilite retornos financeiros.

No entanto, o entendimento jurisprudencial por vezes confunde a figura do investidor com a figura dos sócios da empresa, aumentando o risco de desconsideração de personalidade jurídica envolvendo o investidor e criando um desconforto por parte destes em realizar tais operações que são tão favoráveis para não dizer cruciais para o desenvolvimento de empresas em fase inicial.

Tendo em vista o alto grau de risco e incerteza agregado ao empreendimento em fase inicial, o investidor, na maioria dos casos, não constitui sua participação societária imediatamente no momento em que formaliza o aporte financeiro, mas, sim, o realiza mediante uma promessa futura de conversão do investimento em participação societária, conforme condições acordadas previamente. Geralmente o instrumento utilizado para formalização dos investimentos é o contrato de mútuo conversível.

O contrato de mútuo conversível, assim como os demais aspectos que envolvem o investimento-anjo, foi uma inovação importada dos Estados Unidos e amplamente difundida no ecossistema de startups brasileiro.

Por meio desse instrumento, podemos estabelecer todos os aspectos relevantes do aporte de capital realizado pelo investidor, bem como regras de conversão deste montante em equity da empresa, como, por exemplo, prazo para conversão, regras para conversão antecipada e exit, período de lockdown dos empreendedores e algumas regras de natureza societária que serão efetivadas no momento pós conversão. Além das condições retro exemplificadas o instrumento de mútuo conversível prevê medidas de mitigação do risco dos investidores com relação à startup, impondo limites principalmente às obrigações de cunho trabalhista e dívidas contraídas pela startup com terceiros.

Apesar de ser claro que o investidor não é sócio da empresa, uma vez que não participa de seu capital social e também não está munido dos diversos direitos e obrigações que a posição de sócio acarreta, o que são condições básicas para definir o status socii [6], muito se discutia sobre a responsabilização solidária dos investidores com relação as dívidas da empresa.

A Lei Complementar nº 155/2016 foi inserida em nosso ordenamento jurídico com intuito de tutelar as relações do investidor-anjo e da startup. No entanto, ela não vem sendo aplicada ipsi literis no ecossistema, haja vista ter desnecessariamente engessado esse formato de investimento, como, por exemplo, ao determinar que poderão receber investimento anjo apenas microempresas ou empresas de pequeno porte ou então limitando a formalização do investimento à elaboração de contrato de participação, apenas.

Apesar das críticas, a LC 155/2016 foi bastante importante para resguardar o investidor, ao passo que estabeleceu, em seu artigo 61-A, § 4º, inciso I, que o investidor-anjo "não será considerado sócio nem terá qualquer direito a gerência ou voto na administração da empresa". Adiante, o inciso II do mesmo dispositivo legal estabelece ainda que o investidor-anjo "não responderá por qualquer dívida da empresa (investida), inclusive em recuperação judicial, não se aplicando a ele o art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2020 Código Civil" [7].

Desse modo, resta claro que o investidor-anjo, uma vez que não integra o capital social da startup, não poderá ser responsabilizado por qualquer obrigação que recaia sobre a empresa investida, não sendo, portanto, responsável solidário por quaisquer dívidas ou débitos trabalhistas da empresa. Ademais, seguindo a orientação da LC nº 155/2016, não se aplicam aos investidores-anjos os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica.

Apesar dos dispositivos legais mencionados acima, bem como do embasamento doutrinário sobre a definição de sócio, a jurisprudência brasileira, por não estar familiarizada com o tema, mantinha entendimento bastante desfavorável para os investidores, afastando os termos do contrato de mútuo conversível para considerar o investidor como participante do equity da startup, com a finalidade de responsabilizarem estes por dívidas da empresa investida, inclusive para fins de desconsideração da personalidade jurídica, causando assim grandes prejuízos à estes.

Em recente decisão do Pleno do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul restou estabelecido, por meio de recurso repetitivo, que o investidor não poderá ser responsabilizado por dívidas trabalhistas da empresa investida. Para a maior parte dos desembargadores, quem aplica recursos financeiros em empresas não pode ser considerado sócio para fins de desconsideração da personalidade jurídica, mesmo após realização de conversão em participação societária, vez que ausentes poderes de direção, controle e administração [8].

A decisão acima demonstra um grade avanço para ecossistema de startups pois rompe um dos últimos obstáculos enfrentados pelos investidores, qual seja, o risco de responsabilização por dívidas contraídas pela startup, encorajando-os a realizar cada vez mais aportes, fomentando assim a alavancagem de novos negócios e soluções para a sociedade, em uma relação ganha-ganha.

Concluímos, portanto, que apesar de recente a responsabilização de investidores em razão da realização de investimento-anjo em startups, é tema bastante relevante e ainda muito pouco explorado pela doutrina, jurisprudência e legislação.

A legislação brasileira não traz muitos fundamentos legais acerca do tema, abrindo espaço para distorções e interpretações erradas. A jurisprudência vem lentamente tateando o tema e, entre erros e acertos, traçando os fundamentos para embasar suas decisões. A doutrina, por sua vez não se debruçou apropriadamente sobre o tema, o qual permanece obscuro e pouco explorado.

Desse modo, o tema é muito marginalizado, tratado na prática pelos operadores de Direito e demais players do ecossistema. Muito se aprende sobre o investimento-anjo olhando para os demais países já mais familiarizados com o tema e, por isso, acabamos por importar praticamente todas as interpretações já formuladas, com poucas adaptações para o cenário brasileiro.

 


[1] MORAIS, Felipe. Transformação Digital. 1 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. Pag. 369

[2] MATOS, Felipe. 10 mil startups: Guia Prático para Começar a Crescer um Novo Negócio Baseado em Tecnologia no Brasil. São Paulo: Mariposa, 2017. Pag. 35.

[3] SPINA, Cassio A. Investidor Anjo: Guia Prático para Empreendedores e Investidores. 1 ed. São Paulo: nVersos, 2012. Pag. 19

[4] ROQUE. Pamela Romeu (comp.). Estudos Aplicados em Direito Empresarial. 1 ed. São Paulo: Almedina, 2019. Pag. 85

[5] Associação Brasileira de startups – ABstartups. O Movimento da startup Brasileira e O Futuro do Ecossistema da Inovação – 2017. Disponível em < https://drive.google.com/file/d/1WAw_6rExZfuKBSxGdIwgvvjtPgfO-8Z7/view>. Acesso em 28/3/2020.

[6] FRANÇA, Erasmo Valadão Azevedo e Novaes (comp.). Direito Societário Contemporâneo I. 1 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009. Pag. 171.

[7] BRASIL. Lei Complementar nº 155, de 27 de outubro de 2016. Dispõe sobre alterações na Lei Complementar 123/2006, e Leis n. 9.613, de 3 de março de 1998, n. 12.512, de 14 de outubro de 2011, e 7.998, de 11 de janeiro de 1990; e revoga dispositivo da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp155.htm>. Acesso em: 4/4/2020.

[8] TRT 4ª Região. Recurso Repetitivo: IRDR 0022298-23.2018.5.04.0000. Relatora: Ana Rosa Pereira Zago Sagrilo. DJ: 21/02/2020. TRT 4ª Região, 2020. Disponível em: <https://www.trt4.jus.br/pesquisas/rest/cache/acordao/pje/2bbBTyhVtDKZyqsNSoCetg?&tp=responsabiliza%C3%A7%C3%A3o%3B+investidor>. Acesso em: 04/4/2020>.

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  • é advogada na área de Direito Empresarial, com foco em contratos empresariais, Direito Societário e venture capital do escritório Machado Nunes, pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP).

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