Opinião

Pensamento filosófico é base dos regramentos de condutas - parte 1

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2 de junho de 2020, 9h05

Você já parou para pensar de onde o Estado retira a sua autoridade moral? Muitas vezes nos deparamos com temas filosóficos em que os argumentos justificadores, na maioria das vezes, são inegavelmente utilitaristas ou positivistas. Quem nunca se deparou com uma questão e foi respondido com: "Porque é lei" ou, "Mas está na lei". Tais justificativas não findam a necessidade de mergulhar mais a fundo ao tema, pois justificar uma ação humana pelo fato de certas condutas estarem ou não escritas em um "pedaço de papel" não significa absolutamente nada.

O que faz as pessoas cegamente corroborar em com as leis, ainda que estapafúrdias? Por que obedecemos às leis ainda que essas nos sejam claramente prejudiciais? Talvez não seja esse o argumento central do tema, mas nem só de pontos centrais é formado um argumento. Uma reflexão filosófica pode nos encaminhar a um pensamento crítico de um tema precípuo da jus sociedade: as leis que regulamentam as ações dos indivíduos, o fazem porque existem certas ações individuais que merecem intervenção legislativa ou a lei posta apenas constitui um abstrato teórico encaixável caso a caso e distinto de juízo de moral?

Muito provavelmente parte das pessoas diriam que tal legitimidade veio de um consenso, ou seja, consentimos com isso. Mas nem sempre consentimos com tudo o que nos é imposto, algumas pessoas podem consentir mais que outras, a depender da ideologia do governo detentor do poder naquele momento. Consenso deriva de unanimidade? Mas como pode haver consenso sem que todas as pessoas concordem com tudo? Muitos apelariam para a Democracia, que nada mais é que o consenso da maioria, mas por que uma maioria pode obrigar uma minoria a fazer o que não concorda? E como ao votar, as pessoas repassam aos políticos poderes que nem eles mesmo possuem?

Parto do princípio que o presente artigo não se trata de uma crítica ou um elogio em favor ou desfavor de um modelo ou de outro, indo mais além, o simplório texto humildemente compartilhado aqui nem se trata de uma crítica. Crítica pressupõe um total (ou ao menos amplo) entendimento acerca do tema exposto, e esse entendimento eu não possuo. Dessa forma, o artigo é quase que uma reflexão filosófica e pessoal acerca do tema, por isso me dei ao trabalho quase que pretensioso de elaborar o texto com as minhas palavras e os meus pensamentos, me afastando um pouco dos conceitos e modelos adotados pelos grandes teóricos de prestígio que já abordaram o tema e merecem o devido glamour, ainda que obrigatoriamente tenha que passar por alguns desses conceitos para formar minha linha de raciocínio.

A discussão sobre o Direito Natural e o Direito positivo sempre se fará presente. E pelo andar da carruagem o leitor já deve ter reparado que abordarei mais a forte corrente defensora do jusnaturalismo, entendida pelos juristas e grandes filósofos como o direito que se perfaz independentemente da vontade humana, mas essa narrativa é a correta? Será que realmente há um direito que se perfaz independentemente da vontade humana? O regramento jurídico mais remoto que se tem conhecimento (pelo menos majoritariamente) é o Código de Hamurabi (aproximadamente 1800 anos antes de Cristo), dentro dele eram contidas diversas proteções a bens jurídicos, mas também diversos regramentos específicos àquela comunidade, que derivavam de atitudes inadmitidas pela sociedade e regulada por quem detinha o poder, exemplo disso é o Art. 25 § 227 do referido código: "Se um construtor edificou uma casa para um Awilum, mas não reforçou seu trabalho, e a casa que construiu caiu e causou a morte do dono da casa, esse construtor será morto".

Mas então, podemos dizer que o surgimento dos primeiros regramentos de condutas veio de algo que não fosse humano, ou então, ainda que fosse humano, mas autônomo deste?

Positivismo jurídico
Ainda que pareça repetitivo, faz-se necessário ao menos mencionar de forma concisa, pois o tema toca a parte fundamental da problemática do texto, a dialética quase que maçante entre o naturalismo e o positivismo, dos mesmos criadores de "Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?", surge a discussão trabalhosa no mundo jurídico acerca de quem mais tem razão, guarde bem essa palavra, razão, voltaremos nela posteriormente. O Direito natural é uma das mais antigas tentativas de compreensão teórica em volta do fenômeno jurídico, da mesma forma que a lei natural é uma das mais antigas tentativas de compreensão teórica em volta do fenômeno social comportamental. 

Durante a história do direito, o jusnaturalismo, em boa parte, confundiu-se com o próprio percurso da Filosofia do Direito e com seus direitos mais importantes, uma vez que esta se expressou desde os primórdios até o final do século XVIII, pela doutrina jusnaturalista. Os antigos teóricos, em miúdos, lecionam que o Direito Natural é uma linha de pensamento do qual existe um direito superior à legislação positiva estabelecida pelo soberano, de modo universal, questão defendida amplamente pelos filósofos Heráclito de Éfeso (535-470 A.C) e Sófocles (494-406 A.C.).

Em suas lições Sófocles relata uma clássica tragédia muito importante e amplamente difundida pelos estudiosos do tema: Antígona, irmã de Polinice não cumpriu com as leis do Rei Creonte, que instituía a proibição de enterrar o corpo de seu irmão, visto que este era considerado um traidor por se posicionar contra o poder monarca.

Assim, Antígona inconformada com tal proibição estabelecida pelo Rei, insistiu em sepultar seu irmão e foi surpreendida durante o enterro. Ocorre que em sua defesa, Antígona invocou as leis não escritas dos deuses, leis imutáveis à época, e que lhe permitiam proceder de tal forma (direito das famílias de enterrar os seus entes mortos).

Destarte, Antígona visava afastar a obrigatoriedade das leis constituídas pelo Rei, bem como fundamentar o direito positivo vigente sobre requisitos que vão além da manifestação da autoridade estabelecida, possibilitando o descumprimento das normas instituídas quando estas se chocarem com o princípio da justiça (direito superior).

A partir disto, comumente, define-se o Direito Natural como uma doutrina jurídica defensora da tese que o direito positivo deve ser objeto de uma valoração que tem como modelo um sistema superior de normas ou de princípios (direito ideal) que lhes conferem a validade. Por esta definição podemos citar algumas características[1] importantes do Jusnaturalismo:

  • A legislação vigente deve ser sopesada com base em determinados conteúdos superiores;
  • Tais conteúdos apresentam fonte de uma determinada categoria universal e imutável (ideal de justiça), devendo sempre se sobrepor às disposições formais da legislação.

Quando falamos de conteúdo, referimo-nos a uma ideia de justiça. Seus defensores como os autores Hervada, Maritain, Messner, Villey, Geroge, Boyle, Grisez e especialmente, Finnis[2], buscam ilustrar que as normas e princípios, independentemente de seu acolhimento positivo do direito, detém prioridade sobre as leis em vigor e o poder estatal que as efetiva. Ou seja, a legislação vigente somente será válida na medida em que suas disposições corresponderem às exigências de um ideal de justiça.

Com isso, temos que uma regulamentação positiva injusta da conduta humana não possui nenhuma validade, não sendo, portanto, de direito em sentido estrito, uma vez que por direito, temos apenas uma ordem jurídica válida, isso pelo o que os antigos teóricos afirmam.

No mundo jurídico, houve um momento de extrema importância na divisão entre leis, direito natural e o positivismo clássico. Antes, cumpre salientar que o positivismo já era difundido por filósofos como Hobbes em seu clássico "positivismo jurídico no Leviatã", e por Augusto Comte, um de seus grandes idealizadores, na obra "Apelo aos conservadores" de 1855. Porém, no mundo jurídico — e aqui destaco – no mundo jurídico brasileiro, o positivismo mergulha de cabeça com a "Teoria pura do Direito" de Hans Kelsen.

Reafirmo que o intuito do trabalho não é adentrar ao espectro de uma obra ou outra, mas apenas pontuar um ou outro tema que nos remeta ao presente trabalho, até mesmo para não deixar demasiado cansativo para quem lê. Assim sendo, a Teoria pura do Direito de Hans Kelsen, reduz a expressão do Direito à norma jurídica, em outras palavras, Kelsen "purifica" o Direito, libertando-o de especulações filosóficas e sociológicas, separando o mundo do ser, do mundo do dever-ser, em uma visão Kantiana.

Ao longo de todos esses anos pós positivismo "puro" Kelsiano, diversos estudiosos do tema criticaram a abordagem feita por Kelsen, entre eles Eric Voegelin, seu próprio aluno, em seu ensaio "Justo por natureza", e John Finnis, o maior pensador contemporâneo do jusnaturalismo, em seu livro "Lei natural e Direitos naturais".

Assim, o Direito positivo surge como uma crença exasperada no poder do conhecimento científico, totalmente oposto à posição jusnaturalista, buscando objetividade na ciência jurídica, com juízos de fato e não de valor. "Direito positivo é o direito institucionalizado pelo Estado, é a ordem jurídica em determinado lugar e tempo" [3].

Faz-se difícil caracterização do modelo positivista visto que é pautado no ceticismo ético, mas suas nuances (positivismo ideológico, metodológico e formalismo jurídico) possui profundas menções do jusnaturalismo, aqui faço um adendo. Como toda novidade teórica, ainda mais vindo de outro país, o sistema brasileiro de pronto adotou o sistema positivista essencialmente no seu regramento, como se tudo que fosse novo e estrangeiro, fosse intrinsicamente melhor a ser empregado do que a utilização da ordem natural das coisas.

Continuando, existem duas palavras que são bases para contrapor totalmente o positivismo do jusnaturalismo: a palavra "ordem" e a palavra "justiça".

Para Finnis, a ideia básica referente ao estudo do direito e da ordem social é que existem diversos bens humanos garantidos que são pressupostos para uma razoabilidade prática que somente as instituições podem cumprir. O filósofo jusnaturalista John Locke[4] também percebe em suas reflexões que o homem possui direitos desde nascença, como a vida, saúde e a liberdade, sendo de responsabilidade do soberano a garantia de tais direitos.

Por justiça, historicamente temos três referências a serem utilizadas:

  • a justiça deve ser a própria natureza (mundo antigo): por esta percepção, temos o Direito Natural Cosmológico, que denota a ordem natural, ou seja, através da natureza das coisas. Muito diferente das diversas leis humanas, podendo ser reveladas através da análise racional dos homens, sendo justas na medida em que as coisas que forem interpretadas de forma correta pelo homem. Como exemplo, temos o pensamento de Aristóteles (384 -324 A.C.). Para ele, existem dois tipos distintos de lei: a positiva (que determina a lei própria, a que cada um determina para si mesmo, podendo ser escrita ou não) e a natural (lei comum). Trata-se, portanto, da lei que tem validade universal, instituída como referencial para a lei positiva, que não poderá sob nenhuma hipótese contrariá-la para tornar-se válida. Podemos dizer que em consequência disto, o filósofo Aristóteles propôs a existência do justo e o injusto comum pela natureza, que todos participam ou aceitam, mesmo que não exista um pacto.
  • A justiça deve ser Deus (mundo medieval): é o chamado pela doutrina de Direito Natural Teológico, voltando-se para a percepção de que o mundo é organizado pela vontade de Deus, e suas leis divinas que governam, sendo cabível ao homem analisar racionalmente os desígnios de Deus. Como forte defensor dessa teoria, temos o Tomás de Aquino (1227-1274 D.C), que entende a razão divina como ordem geral do universo e esta ordem deve ser respeitada, sendo possível compreendê-la por meio da Revelação (monopólio da Igreja) e pela ponderação racional dos homens. Assim, além da lei divina (direito natural) e da lei eterna (provinda da Igreja), temos a lei comum (positiva). Para validá-las, a lei positiva deve estar em conformidade com a lei natural e consequentemente com a lei eterna. Ou seja, a validade da lei advém de uma lei justa oriunda da vontade de Deus.
  •  E por fim, a justiça através da natureza humana (mundo moderno nascente): intitulado pela doutrina de Direito Antropológico. Este tipo de direito, remete ao homem como o centro do universo, detentor de diversos direitos naturais inatos. Para esta posição, a fase divina cai por terra e o ser humano é exaltado frente ao poder da Igreja e do Estado. Assim, o Direito Natural representou uma grande importância da história sobre o princípio da Revelação e o absoluto poder do Estado moderno. Como princípio fundamental temos o fato de que o direito positivo apenas será validado se atender os direitos naturais inatos dos homens, constituindo um contrato manifesto de vontade (contratualismo). Como principal defensor, temos o filósofo John Locke (1632-1704), que em seus estudos, relata que o homem detém conjunto de direitos inatos como a vida, liberdade e propriedade, e que, não são transpassados para o corpo político. Ainda, assegura que será inválida toda lei que contrarie os direitos inatos, mesmo com a possibilidade de ser desobedecida por qualquer cidadão, visto que este possui o direito de resistência perante a lei injusta. Esta doutrina foi um marco de inspiração para a revolução americana e francesa, contribuindo para a formação do constitucionalismo moderno e do Estado de Direito.

Dessa forma, compreendemos que muito além das particularidades de cada posição defendida, o Direito Natural reconhece algo comum entre os três tipos: para ser validado um direito positivo, é necessário uma ordem superior de justiça, que poderá ser o cosmos, Deus ou os direitos naturais inatos.

O direito positivo, diferentemente, para validar o direito não requer uma norma ou princípio de justiça. Muito pelo contrário, para o positivismo jurídico, o direito vale ainda que seja injusto, ou seja, esta doutrina limita o direto à ordem estabelecida, amplamente discutido pela teoria monista.

Por outro lado, o jusnaturalismo é disciplinado pela teoria dualista, e compreendido em dois planos: a norma positiva vigente e as que nela devem ser respeitadas para serem consideradas boas, válidas e legitimas.

Ser positivista basicamente significa considerar o Direito como um método descritivo, livre de referências e valores morais. As primeiras reflexões sobre esta posição são encontradas no pensamento grego clássico e no cristianismo antigo e medieval. No entanto, Finnis critica duramente essa posição de autores como Bentham e Austin, uma vez que para ele, nenhuma pessoa pode definir algo sem participar, ele mesmo, desse processo e desconsiderar tudo o que ele entenda como ideal para o ser humano, descartando as exigências de razoabilidade prática[5]. Esta que consiste na distinção entre atos razoáveis ou desarrazoados, sendo possível construir um aglomerado de padrões morais gerais.

Para o direito positivo, o jusnaturalismo não possui nenhum significado real além de histórico e, portanto, sem nenhuma capacidade de elucidar a experiência jurídica de fato e esclarecer conceito do direito.

Entretanto, revela-se distorcida essa percepção visto que a teorização jusnaturalista persiste até os dias atuais, inclusive no positivismo de diversos pensadores, como H Kantorowicz[6] que adotou os valores do direito natural para sua concepção positivista. Como exemplo, podemos citar Talking Right Seriosly de Ronald Dworkin que sustenta veementemente a existência de direitos precedentes ao estabelecimento normativo.

Com isso, podemos dizer o Direito Natural é essencial, e que apesar de historicamente ter passado por toda polêmica, fato é que ao analisar os direitos humanos é definitivamente perceptível a influência do direito natural, sendo plenamente possível pontuar que apesar dos esforços para a sua aniquilação ainda não foi superado nos dias atuais.

Para terminar esse ponto, uma observação. Muitas vezes para que uma teoria tenha mais sucesso que a outra não é necessário apenas que a refute, mas também que eleve a teoria conflitante a uma categoria insignificante do ponto de vista teórico, para que o leitor ao estudar sobre o tema seja arrebatado inconscientemente. Dessa forma ocorre com o positivismo jurídico, que não refuta, por completo, a teoria naturalista, mas apenas põe o enfoque sobre um ponto crucial: a religião.

Ao condenar os Direitos naturais a uma crença ou uma confissão religiosa divina, o positivismo estritamente científico e antimoral retira o caráter racional do tema e aponta o leitor para um lado mais fantasioso que real. Isso em um momento onde o ateísmo toma uma proporção cada vez maior na sociedade jurídica, associar os Direitos naturais à Deus ou divindades ou qualquer coisa fora das mãos humanas, menosprezando a importância histórica e significativa dessa vertente e transformando-a em uma irracionalidade foi uma verdadeira jogada de mestre.

Continua parte 2


[1]  BEDIN, Gilmar Antônio. A doutrina jusnaturalista ou do direito natural: uma introdução. Direito em debate- Revista do departamento de ciências jurídicas e sociais da Unijuí.

[2] OHLING. Marcos. Lei natural e direito. A Crítica de Finnis ao Positivismo Jurídico. Instituto Federal de Educacção, Ciencia e Tecnologia Catarinense. Pg. 61

[3] NADER, Paulo. Filosofia do Direito. e. ed. Rio de Janeiro: Forense,1998

[4] MASSARO, Vanessa. Reflexões sobre o jusnaturalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5198, 24 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39884. Acesso em: 24 out. 2019.

[5] FINNIS, Natural Law and Natural Rights, 17. Doravante, apenas NL para Lei Natural e Direitos Naturais, trad. Leila Mendes, São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007.

[6] KANTOROWICZ, Hermann. La definizione del diritto. Trad. Enrico di Robilant. Torino: G. Giappicchelli, 1962, p. 54-55. 

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