Opinião

A separação de poderes, o artigo 142 da Constituição e a intervenção militar

Autor

  • João Ibaixe Jr.

    é advogado criminalista ex-delegado de polícia especialista em Direito Penal pós-graduado em Filosofia Ciências Sociais e Teoria Psicanalítica e mestre em Filosofia do Direito e do Estado.

1 de junho de 2020, 7h12

Nas redes sociais, têm circulado certos vídeos e fotos em que o estimado e respeitadíssimo professor Ives Gandra estaria afirmando ser cabível intervenção das Forças Armadas para resolver eventual conflito ou disputa entre Poderes da República, tendo por fundamento o artigo 142 da Constituição Federal. Com base nisso, alguns afoitos vêm pedindo golpe militar. A postura dos que defendem isso é absurda, inaceitável e odiosa!

Primeiro, porque usam indevidamente, como argumento de autoridade, a figura do prestigiado professor, exemplo de advogado e querido por todos aqueles que atuam na área do Direito.

Segundo, porque tais divulgadores recortam a fala do professor, na forma mais execrável de supostamente apresentar um argumento. Com isso, constroem uma inverdade e uma falácia! O querido professor nunca disse isso dessa forma, nem jamais sustentou um golpe de estado. Bem ao contrário, ele dá claras noções de doutrina em suas explanações, com palavras simples e diretas, cujo destaque e seleção de partes somente pode ser executado por mãos pútridas e hábeis em construções de mentiras.

Em seus últimos vídeos e artigos, o caríssimo professor vem apresentando a chamada doutrina da separação de poderes, a qual foi inclusive objeto de vídeo da cantora Anitta numa live com a advogada Gabriela Prioli, assunto que tomou boa parte da conversa, o que mostra que poucos sabem do que o tema trata.

Separação de poderes é uma teoria que orienta a estrutura dos Estados modernos e organiza suas formas de liderança. Estado aqui é sinônimo de país, para não confundir o leitor desavisado. O Brasil é um Estado, enquanto São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, são Estados-membros. Moderno significa que existe há cerca de 250 anos. Ou seja, antes disso, não havia separação de poderes, os estados eram governados por um único líder.

No Estado moderno, em que se prevê a separação de poderes, normalmente, como aqui, há a divisão entre Executivo, Legislativo e Judiciário. O Executivo cuida da parte administrativa, da execução e operacionalização da Administração, enquanto o Legislativo ocupa-se com a elaboração de leis, dando suporte normativo à administração, e o Judiciário, por fim, cuida da solução de conflitos, comumente relacionados a partir de possíveis leituras e interpretações diversas das leis, por isso, fala-se em jurisdição, isto é, dizer o Direito, dar a interpretação mais adequada da norma para que a Administração tenha segurança para agir. Todas as esferas do poder se relacionam com o cidadão, obviamente, que é a razão da existência, ao mesmo tempo em que é subordinado ao Estado.

Basicamente, o Executivo é exercido por um presidente, o Legislativo, por um grupo de legisladores (no caso do Brasil, senadores e deputados federais) e o Judiciário, por juízes e tribunais. Em nível federal, vale dizer, quanto ao nosso país, no Executivo, a autoridade maior é o presidente da República, no Legislativo, é o presidente do Congresso Nacional (nome de nosso poder legislativo) e, no Judiciário, os juízes (chamados ministros) do Supremo Tribunal Federal. Assim, estão no mesmo plano de poder os presidentes da República, do Congresso e do Supremo. Nenhum deles pode mandar mais que o outro e todos têm de cumprir as diretrizes constitucionais.

Vamos repetir, todos os representantes de cada poder estão no mesmo plano! O presidente da República não é superior aos outros e não manda neles. Quem manda em todos é a Constituição.

Nesse sentido, o professor Ives Gandra, que segue a doutrina clássica, afirma que um poder não pode intervir no outro de nenhuma forma. Assim, os atos constitucionalmente definidos como tais cabem a cada poder particularmente. Mas, e se houver conflito entre um poder e outro? Como resolver? Nesse caso, único constitucionalmente previsto, as Forças Armadas funcionarão como uma espécie de árbitro para acertar e resolver o conflito. Quer dizer, as Forças Armadas irão colaborar com os poderes constituídos. Jamais se fala em golpe de estado e o professor Ives nunca disse isso. A intervenção é a favor, e não contra os poderes. Não há dissolução de nenhum dos poderes no caso. E os militares não tomam o poder!

Isso é o que diz a doutrina clássica. Ela funcionou bem até o começo do século XX, quando os Estados passaram a se tornar mais complexos e a própria vida se tornou mais complexa, com fatores, elementos e forças novas e diversas surgindo como equação a ser resolvida pela sociedade política.

A doutrina clássica passou a não dar mais respostas. A doutrina atual discute exatamente isso. Aqui juntam-se questões diversas, por exemplo, como a do chamado Estado administrativo, em que a Constituição se defronta com a burocracia e o mercado, como a da sociedade de risco, em que se deve considerar os perigos e inseguranças produzidos pelo caminhar do próprio progresso, a virtualização das relações, evidenciada pela atual pandemia, tudo isso gera uma complexidade que demanda respostas diversas em termos políticos.

As ações necessárias não se restringem mais a um único poder. Por exemplo, a nossa Constituição prevê medidas provisórias como atos do Executivo, mas medidas provisórias são leis! Logo, constitucionalmente, o Executivo legisla. O Legislativo trabalha com Comissões Parlamentares de Inquérito e o Judiciário julga e decide questões que fatalmente afetam a Administração. Há claramente uma fluidez nas ações do Estado que não permitem mais um isolamento absoluto de condutas dadas por um único verbo.

O Executivo administra, o Legislativo legisla e o Judiciário julga. Sim, ainda é dessa forma, mas no modelo de sociedade atual, em que até a mídia na internet influencia ações, não pode haver, não se justifica que haja e é impossível não acontecer a não influência de um poder no outro. O principal é o encontro de um mecanismo de balanceamento, que não será jamais apenas jurídico, residindo no campo político e no bem senso, dentro do possível, dos atores envolvidos.

Esse protagonismo, porém, não pertence às Forças Armadas, pela própria restrição constitucional. É essa a lição do eminente professor Ives Gandra, mesmo seguindo a doutrina clássica. É a lição que todo bom cidadão deve ouvir e que todo operador sério do Direito deve reverberar.

Autores

  • é advogado, ensaísta, ex-delegado de polícia, pós-graduado em Filosofia e Ciências Sociais, especialista em Direito Penal, mestre em Filosofia do Direito e do Estado e ex-vice-presidente da Comissão de Estudos em Direito e Economia da OAB-SP.

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