Opinião

Despejo liminar após o veto ao RJET é uma solução simples

Autor

  • Haroldo Lourenço

    é sócio do escritório BLP Advogados pós-doutor em Arbitragem na Administração Pública (Uerj) doutor e mestre em Direito Processual (Unesa) pós-graduado em Processo Constitucional (Uerj) e em Processo Civil (UFF) professor adjunto concursado em Processo Civil na UFRJ professor convidado na Fundação Getúlio Vargas (FGV) na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj) membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC) do Instituto Carioca de Processo Civil (ICPC) e do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

20 de julho de 2020, 6h36

O Brasil publicou a sua lei emergencial (Lei Federal nº 14.010/20) para enfrentamento à pandemia mundial da Covid-19, instituindo um Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), tendo o seu artigo 9º pretendido vedar a concessão de liminares nas ações de despejo [1], contudo, foi totalmente vetado pela presidência.

É interessante que as razões do veto [2] se mostraram alinhadas com alguns dos propósitos da Lei nº 13.874/19 (Liberdade Econômica), que prestigia um modelo contratual mais liberal, pautado na autonomia privada e na valorização do pacta sunt servanda [3].

Assim, restou um cenário nebuloso pois, a priori, a "resposta legislativa" diante do veto foi no sentido de se permitir o desalijo em todas as situações autorizadas pela lei, que inclusive são consideravelmente ampliadas pela jurisprudência [4], não havendo nenhum dispositivo legislativo que regulamente da retomada dos imóveis durante o período pandêmico.

Nessa linha, algumas questões merecem reflexão.

A nomenclatura "liminar" virou expressão promíscua, utilizada indistintamente para várias decisões judiciais. Liminar é a decisão judicial proferida no início do processo [5], antes da citação da parte contrária, contudo, em 1991, ano de publicação da Lei de Locações (8.245/91), não havia sido sequer generalizada a tutela antecipada [6], portanto, grande mérito para a lei do inquilinato que se mostrou de vanguarda.

Atualmente, com o sistema processual está mais amadurecido sobre o tema e, genuinamente, o que se tem nos incisos do artigo 59, §1º, da Lei 8.245/91 são tutelas de evidência documentais, semelhante as hipóteses previstas no artigo 311, II, III e IV do CPC/15.

Tutela de evidência é uma técnica processual fundada no alto grau de probabilidade do direito alegado, redistribuindo o ônus do tempo necessário para desenvolvimento de um processo e a prolação de uma decisão definitiva [7], permitindo a imediata e provisória tutela da parte que demonstrar esse alto grau de probabilidade em detrimento da parte adversa e da improbabilidade de êxito em sua resistência [8], não havendo que se perquirir se há ou não risco de lesão ou grave dano.

Restrições à concessão de liminares em nosso ordenamento não é novidade [9], já tendo sido enfrentada exaustivamente pela jurisprudência, não se podendo, peremptoriamente, rotulá-las de inconstitucional frente ao artigo 5º, XXXV da CF/88, sendo um caso de norma constitucional no plano abstrato, que pode ser inconstitucional no plano concreto, caso o jurisdicionado demonstre que necessita de prestação jurisdicional, estando o magistrado autorizado a afastar tal vedação, exercendo o controle difuso de constitucionalidade [10].

Não nos parece que o artigo 9º seria inconstitucional caso não fosse vetado [11], por outro lado, nunca nos agradou essa peremptória vedação, por ser processualmente desnecessária [12].

Se, no caso concreto um magistrado entender que não é possível a sua concessão, que fundamente sua decisão adequadamente, observando o artigo 489, §1º, do CPC/15, expondo as suas razões que podem ser, inclusive, o risco de expor alguém ao contágio ou disseminação do novo coronavírus.

O propósito do RJET ao pretender proibir os despejos nos parece ser evitar o envolvimento de várias pessoas, como oficiais de justiça, chaveiro, transportadora, locatário, sua família, ocupantes, lojistas, funcionários, entre vários outras, além de proteger o direito à moradia (artigo 6º CF/88), pois os desalijados terão que, em meio a um cenário pandêmico e de quarentena, buscar novas acomodações, o que realmente será tormentoso.

Há, contudo, diversas falhas no intento pretendido pelo RJET.

Não se cogitou, em nenhum momento, nas reintegrações e imissões na posse, a quais trariam o mesmo efeito, bem como se pretendeu limitar o despejo liminar somente em algumas hipóteses, como se as restantes fossem urgentes a justificar a sua efetivação em um cenário pandêmico, o que não é verdadeiro, pois, por exemplo, estava de fora das hipóteses do RJET o término do prazo da locação por temporada e a morte do locatário sem deixar pessoas autorizadas por lei, situações que não externam nenhuma urgência [13].

O legislador trouxe muita poeira, sem, ao final, trazer solução, restando aos operadores do Direito se debruçarem sobre a questão. A restrição pretendida pelo RJET geraria mais confusões que soluções, tendo o legislador trilhado caminho equivocado sobre o ponto.

Um pouco de pragmatismo vem bem a calhar. Não é a decisão judicial que aumenta o risco de disseminação e contágio, mas a sua efetivação.

Nenhum óbice o magistrado autorizar a retomada de um imóvel, seja em tutela provisória ou em sentença, seja em uma ação de despejo, de reintegração ou de imissão na posse, contudo, a depender da situação concreta, será possível postergar ou condicionar a eficácia de sua decisão para um momento mais seguro, como por exemplo em locais onde o lockdown tenha sido reduzido.

Destarte, sem a pretensão de diminuir a questão, mas a solução nos parece simples e deve ser dada à luz da minuciosa análise do caso concreto.

 


[1] A restrição seria somente para as hipóteses do artigo 59 §1º incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei Federal nº 8.245/91.

[2] Razões do veto: "Contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo, dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio".

[3] Vide, por exemplo: artigo 113 e o parágrafo único do artigo 421, ambos do Código Civil.

[4] O STJ, por exemplo, há muito autoriza deferimento de liminares para desocupação do imóvel na ação de despejo fora do rol do artigo 59 §1º da Lei nº 8.245/91: REsp 702.205/SP, rel. Min. Esteves Lima, j. 12.06.2006.

[5] Oriunda de in limine, que significa no início, desde logo.

[6] Fenômeno ocorrido com a edição da Lei nº 8.952/94, quando introduziu o artigo 273 no Código de Processo Civil de 1973, autorizando a sua concessão em qualquer processo, quando, até então, era prevista somente em procedimentos especiais, como nas ações locatícias, no mandado de segurança (veja-se, por exemplo, o artigo 7º, II da Lei nº 1.533/51, revogada posteriormente pela Lei nº 12.016/09) ou nas propaladas possessórias de força nova (veja-se artigo 928 do CPC/73, obviamente revogado pelo CPC/15).

[7] Engana-se quem afirma que o processo deve ser rápido. Processo rápido é processo sem garantias. Por outro lado, não pode demorar em demasia. Não por outro motivo que o legislador constitucional afirma "razoável duração" (artigo 5º, LXXVIII CF/88).

[8] BODART, Bruno Vinícius da Rós. Tutela de evidência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 132.

[9] Tomemos como exemplo as restrições contra o Poder Público preservadas, recentemente, pelo artigo 1059 do CPC/15.

[10] Para maiores considerações remetemos o leitor para LOURENÇO, Haroldo. Processo Civil Sistematizado. 5. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019, p. 38-39 e 332.

[11] Em sentido contrário, afirmando se tratar de flagrante inconstitucionalidade: RESTIFFE, Paulo Sérgio. Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações de Direito Privado (RJET). Fonte: https://emporiododireito.com.br/leitura/regime-juridico-emergencial-e-transitorio-das-relacoes-de-direito-privado-rjet, acessado em 13/6/2020.

[12] Além de vulnerar demasiadamente a proteção constitucional ao direito à propriedade.

[13] Formulando o mesmo questionamento: ABELHA, André. GOMIDE, Alexandre Junqueira. A lei 14.010/20 e o Direito Imobiliário: imperfeita e necessária. Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/328822/a-lei-14010-20-e-o-direito-imobiliario-imperfeita-e-necessaria, acessado em 13/6/2020.

Autores

  • é advogado, professor adjunto de Processo Civil da UFRJ, pós-doutorando em Direito pela Uerj, doutor e mestre em Direito Processual, autor de diversas obras e artigos jurídicos e membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual), da Abami (Associação Brasileira de Advogados do Mercado Imobiliário) e do ICPC (Instituto Carioca de Processo Civil).

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