Opinião

A quem interessa a destruição de provas e a omissão de dados de letalidade policial?

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18 de julho de 2020, 17h23

Com muita preocupação, a comunidade jurídica recebe a decisão em Habeas Corpus coletivo, impetrado por uma associação de oficiais denominada Defenda PM, contra a Resolução 40 da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, feita no intuito de melhor controlar os índices de letalidade policial.

Trata-se do HC concedido pela 1ª Auditoria Militar de São Paulo, que permite que os policiais militares ignorem o conteúdo da resolução em questão e, assim, possam apreender imediatamente objetos, instrumentos do crime e outros elementos de prova sem precisar preservar o local e aguardar a chegada da Polícia Científica [1].

A resolução em questão, datada de 2015, representa um avanço em termos de política criminal e de segurança pública, pois importa numa reunião esforços no sentido de concentrar todos os dados de violência e letalidade por parte de agentes policiais em serviço. A não ser pelo fato de disciplinar todas as ocorrências sob um mesmo protocolo, que facilita a coleta de estatísticas e dados, assim como viabiliza o canal de comunicação imediata com todos os órgãos em tese interessados na ocorrência, como o Conselho Integrado de Planejamento e Gestão Estratégica da Secretaria da Segurança Pública (CIPGE), o Ministério Público, a Corregedoria da Polícia Militar, Copom e Cepol, e, ainda, regulamentar prazos e procedimentos mais ágeis para o periciamento e trabalho técnico-científico, nenhuma novidade processual traz.

Do ponto de vista técnico, apenas reproduz e regulamenta disposições do Código de Processo Penal, em especial tradicional redação do artigo 6º, que assim dispõe:

"Artigo 6º  Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

I dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais;

II apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais;

III colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias".

Não conflita, tampouco, com as disposições do próprio Código de Processo Penal Militar, cuja determinação para que haja a cautela e preservação dos elementos de prova é idêntica:

"Artigo 12  Logo que tiver conhecimento da prática de infração penal militar, verificável na ocasião, a autoridade a que se refere o §2º do artigo 10 deverá, se possível:

a) Dirigir-se ao local, providenciando para que se não alterem o estado e a situação das coisas, enquanto necessário;

b) Apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com o fato;

c) Efetuar a prisão do infrator, observado o disposto no artigo 244;

d) Colher todas as provas que sirvam para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias".

A competência constitucional para a apuração de crime doloso contra a vida é, e sempre foi, do ponto de vista constitucional, do tribunal do júri, e isso por força do artigo 5º inciso XXXVIII, d.

Do mesmo modo, é o que sobressai do artigo 9º do Código Penal Militar e do artigo 82 do CPPM. Mesmo com as alterações provocadas recentemente, em 2017, pela Lei 13.491, que modificou o conceito de crime militar, os crimes dolosos contra a vida permanecem sob competência do tribunal do júri, com algumas exceções, tais como se praticados no contexto de atribuições estabelecidas pelo presidente da República ou ministro da Defesa, ações referentes a operações de garantia da lei e da ordem, situações pontuais cuja discussão de constitucionalidade ainda não chegou a ser enfrentada em nossas cortes superiores.

Assim sendo, não há motivos para que a Polícia Militar busque interferir, ainda mais coletivamente e preventivamente, contra ações em que o interesse público só ganha em transparência e efetividade na apuração, lembrando que a resolução impugnada não impede antes, até facilita a pronta comunicação e, se for o caso, imediata avocação de competência nos casos em que a Justiça castrense se mostrar afetada.

Curioso até mesmo que o faça servindo-se de um remédio constitucional destinado a tutelar a liberdade, como é vocação do writ de Habeas Corpus.

A pergunta que não quer calar e que fica sem resposta, pelo menos não se tem coragem de falar abertamente é: a quem interessa impedir a mera atuação científica cautelar de preservação de provas provas estas que poderão servir ao tribunal do júri mais à frente — e/ou a contabilização mais realista dos eventos letais em ocorrências policiais?

Ora, num país em que os índices de letalidade policial aumentam em percentuais alarmantes nos últimos anos [2], sendo considerados os mais altos do mundo [3], uma insurgência com tal conteúdo só faz acender o sinal de alerta do Estado democrático de Direito e reiterar, de forma mais contundente, a necessidade de vigiarmos de perto o nosso sistema de garantias constitucionais.

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