Opinião

Filantrópicas cumprem relevante papel no acesso ao ensino na Covid-19

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15 de julho de 2020, 6h04

Impossível fechar os olhos ao impacto da pandemia no setor educacional ao privar inúmeros estudantes da fruição ao direito à educação, ensejando, como alternativa à suspensão das atividades presenciais, o ensino remoto para não prejudicar o calendário escolar e a interrupção do processo de aprendizagem.

Ocorre que no Brasil milhares de estudantes possuem acesso precarizado à internet, o que dificulta, ou ainda inviabiliza, a continuidade do estudo à distância. Pesquisa divulgada em 2019 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil [1] aponta que entre os domicílios de classe C, 43% tinham computador e internet e 33% tinham apenas a conexão à internet. Já entre os domicílios das classes DE, a maioria não possuía acesso ao computador e nem à internet (58%), e mais de um terço (34%) tinha acesso apenas à internet. Portanto, filiando-me ao raciocínio do professor Boaventura de Sousa Santos, na obra "A Cruel Pedagogia do Vírus", é perceptível que existem estudantes que "padecem de uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela"  [2].

Felizmente, diversas organizações da sociedade civil mobilizam-se para diminuição das assimetrias evidenciadas durante esse período. Aqui vale à pena apresentar a atuação das entidades de educação filantrópicas (detentoras de Cebas) [3] que embora atuem na educação privada, concedem bolsas integrais a estudantes constantes no CadÚnico, beneficiários do Bolsa Família ou que possuam alguma outra vulnerabilidade socioeconômica. E mais: neste momento, essas organizações por iniciativa própria reforçaram a concessão de benefícios complementares para que esses estudantes não sofram descontinuidade no processo de aprendizagem.

Nesse período, percebo iniciativas de organizações para além da concessão de benefícios ordinários (exemplos: materiais, uniformes etc.) e que merecem ser destacadas, inclusive, para servirem de inspiração para tantas outras. Logo, no início da quarentena algumas instituições preocupadas com a segurança alimentar passaram a conceder cestas básicas aos alunos bolsistas. Com o passar do tempo e a adoção do ensino remoto, a solução encontrada no intento de reduzir as vulnerabilidades dos seus alunos foi a aquisição de computadores, tablets e até mesmo a contratação de pacotes de dados para suportar atividades online.

Vejo que o Cebas é um importante instrumento e ainda subutilizado pelo poder público, sobretudo neste momento, pois, deixando de lado o debate travado no STF por ocasião da ADI 4480 [4], é fato que essa política pública no âmbito da educação contribui, efetivamente, para o processo de inclusão social no país, por oportunizar o acesso e também viabilizar a manutenção de estudantes com vulnerabilidades socioeconômicas ao ensino básico e superior por meio da concessão de bolsas de estudos.

Ocorre que essa política não se esgota com a bolsa, pois é possível complementá-la com a concessão de três tipos de benefícios complementares, a saber: tipo 1, destinado ao bolsista, tais como uniforme, material, moradia etc; tipo 2, ações e serviços destinados a alunos e seu grupo familiar para favorecer acesso, permanência e aprendizagem; e tipo 3, projetos e atividades de educação em tempo integral destinados à ampliação da jornada escolar dos alunos da educação básica matriculados em escolas públicas.

Os benefícios são mecanismos valiosos e que poderiam, inclusive, ser incentivados pelo poder público. O MEC, como principal personagem na política do Cebas, por óbvio, respeitando a autonomia das organizações, já poderia ter estabelecido debate com as entidades sobre a importância dos benefícios neste momento. Inclusive reforçando o aproveitamento para fins de Cebas, já que não é a regra no setor conceder benefícios focando à certificação, mas por vocação, apesar de expressa autorização legal.

O órgão poderia, à luz das iniciativas já desenvolvidas por organizações pioneiras na concessão de benefícios, ou ainda, após processo participativo do setor, avançar na exemplificação de benefícios no contexto de pandemia, como outros ministérios já têm feito. Vale destacar, quanto a isso e em exemplo paralelo, o Ministério da Cidadania, que expediu orientações sobre alguns serviços sociais à luz das necessidades geradas pela pandemia.

Ademais, apesar de sabermos que, tecnicamente, não devesse ensejar questionamentos, outra dúvida corriqueira dessas entidades é se o repasse aos hipossuficientes na forma de bens, alimentos e outros, incorreria em distribuição de parcela do patrimônio tal qual expresso na legislação tributária , o que poderia violar os requisitos da imunidade tributária e que proíbe a distribuição de patrimônio.

Apesar do tema não guardar relação com distribuição de patrimônio, hipótese vedada às entidades sem fins lucrativos e imunes, a ausência de orientação conjunta do MEC e da Receita Federal do Brasil (competente por fiscalizar os requisitos para imunidade das entidades filantrópicas) suscita essas dúvidas e serve de desestímulo para ações sociais mais arrojadas.

Acredito que um maior diálogo dos órgãos públicos em caráter orientativo e participativo com as entidades com Cebas contribui para potencializar os resultados dessa política pública em benefício de milhares de estudantes em situação de vulnerabilidade pessoal e social.

 


[2] Santos, Boaventura de Sousa. A cruel Pedagogia do Vírus. ed. Coimbra: Almedina. 2020.

[3] Certificação concedida pelo MEC para quem atua na educação e concede bolsas de estudos a grupos vulneráveis.

[4] O STF por meio da ADI 4480 reconheceu a inconstitucionalidade formal de alguns dispositivos da Lei nº 12.101/2009, entre esses a exigência de bolsas de estudos e perfil socioeconômico, pois deveriam estar previstos em LC. A AGU apresentou ED’s requerendo, entre outros, a concessão de efeito suspensivo e seja estabelecida a modulação temporal dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade.

Autores

  • é advogada com atuação no Terceiro Setor, mestre em Democracia e Bom Governo pela Universidade de Salamanca (Espanha), pós-graduada em Organizações da Sociedade Civil (Flacso Argentina – EAD) e ex-secretária-geral da Comissão de Direito do Terceiro Setor.

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