Opinião

Acordos decisórios para a tutela da administração pública

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11 de julho de 2020, 6h13

No último dia 26 de maio, o Supremo Tribunal Federal, por meio de sua 2ª Turma, começou a julgar um total de 4 Mandados de Segurança[3] referentes a possíveis sanções por parte do TCU a empresas punidas por fraudes licitatórias. Nessas ações discute-se tese segundo a qual a aplicação de sanção pelo TCU impediria o cumprimento dos acordos firmados pelas empresas com a AGU, a CGU e o MPF. Ademais, a terceira impetrante teria ainda celebrado com o CADE um acordo de leniência sobre a mesma conduta e teria fornecido documentação ao próprio TCU que recusou o acordo e aplicou sanção fundamentada naqueles.

O caso ilustra bem a situação de multiplicidade e superposição de competências administrativas para a celebração de Acordos Decisórios em nosso ordenamento. Em síntese, os denominados acordos de leniência podem ser: (i) Antitruste (Lei 12.529/2011); (ii) Anticorrupção (Lei 12.843/2013); (iii) com o Ministério Público; e (iv) pelo Sistema Financeiro Nacional (Lei 13.506/2017). Há ainda o “acordo de não persecução cível” nas Ações de Improvidade, introduzido pela Lei 13.964/2019.

Desta feita, nosso ordenamento comporta uma multiplicidade de instrumentos para acordos decisórios, com aplicações e abrangências diversas, causando profundos debates no meio jurídico. Nesse contexto, o Ministro Gilmar frisou o fato de que os acordos constituem importantes instrumentos na descoberta, desmantelamento e punição de infrações econômicas, sobretudo de condutas colusivas. Embora não possam ser confundidos com os institutos próprios da esfera criminal, semelhante às colaborações premiadas o Estado oferece “prêmios” e “regalias” em troca de informações e provas.

Espera-se a partir de programas de leniência que um dos autores “confesse” participação no ilícito e, com isso, as autoridades possam iniciar investigação relativa a outros agentes. Ocorre que a implementação desses acordos exige, em contrapartida, o oferecimento de certas vantagens ao agente que se dispõe a colaborar. Em troca das informações e provas o Estado mantém a suspensão circunstancial condicionada das sanções. Em algumas hipóteses a suspensão das sanções torna-se condição de cumprimento do próprio acordo. Mas, como atualmente estão estruturados os Acordos Decisórios, mesmo que a empresa consiga negociar e fechá-lo com um órgão, ela pode se tornar vulnerável à ação de diversos outros, que inclusive poderão dispor de provas advindas do intercâmbio de documentos com órgão no qual o Acordo Decisório foi fechado.

No caso julgado pelo STF, restou decidido que, embora a celebração do Acordo com outros órgãos (CGU e AGU ) não obste a apuração pelos mesmos fatos por parte do TCU, as sanções devem levar em conta os impactos possíveis nos acordos já efetuados com a Administração. Nota-se, portanto, o elevado grau de complexidade que ainda cerca a celebração desses acordos pela Administração. Essa discussão, per se já bastante melindrosa, ganha contornos ainda mais desafiadores quando tratamos das infrações contra a Administração Pública, por duas razões: (i) a multiplicidade de bens jurídicos tutelados e (ii) a amplitude do controle exercido sobre a Administração.

Nesse cenário, quando falamos em prejuízo à Administração Pública referimo-nos a violação de mais de um bem jurídico. Basta resgatar a tradicional diferenciação da doutrina administrativa entre interesse público primário — que consubstancia a satisfação de interesses coletivos — e secundário — que tutela o interesse do Estado enquanto sujeito de direitos e obrigações, especialmente em sua dimensão pecuniária.

Essas duas dimensões são ponto de partida para o reconhecimento dos inúmeros interesses que são violados quando se praticam infrações em detrimento da Máquina Pública. Um exemplo ajuda a entender: quando um grupo de particulares combina preços para propostas em determinado procedimento licitatório e suborna agente da entidade licitante para ser favorecido, é possível vislumbrar dano a pelo menos três bem jurídicos: à ordem econômica, em razão da prática de cartel; à probidade administrativa, diante da frustração à lisura da licitação; e à integridade da Administração, em razão da prática de corrupção.

Cada um desses bens está inserido na competência de uma ou mais entidades, daí os imbróglios envolvendo competências e quanto a imposição de penalidades por condutas que já objeto de outros Acordos. A Administração Pública guarda imbricado arranjo de valores e bens jurídicos, e dificilmente a violação a um deles poderá ser isolada, de modo que é pungente a necessidade de coordenação entre as autoridades, sob pena de descrédito e inefetividade dos instrumentos negociais quando utilizados para a repressão de infrações em desfavor da coisa pública.

O segundo aspecto é desdobramento da multiplicidade de bens jurídicos que compõem a coisa pública, o que resulta na existência de diversas espécies de controle sobre esses interesses. Em acréscimo a essa perspectiva, devemos mencionar que a amplitude do controle sobre o Poder Público deve-se ao regime democrático preconizado pela nossa Constituição, que impõe como dever inafastável a transparência na condução dos assuntos do Estado.

A diversidade nas formas de controle é corolário do princípio republicano, que repousa sobre o fundamento do ‘inconformismo social com a impunidade dos agentes públicos’ e da ‘ideia de responsabilidade dos governantes’[4]. Sem prejuízo desse preceito, a amplitude do controle sobre a Administração deve ser equacionada de modo a não representar obstáculo à implementação de medidas consensuais e participativas na repressão aos ilícitos praticados contra o Poder Público.

Por fim, as considerações apresentadas, por certo, não têm a pretensão de oferecer solução para a situação identificada. Mesmo porque, se pensamos que as dificuldades verificadas na celebração de acordos decisórios são decorrência de elementos centrais de nosso modelo democrático – como a pluralidade de bens protegidos pelo interesse público e a larga possibilidade de controle sobre a Administração – é evidente que não se pode pensar em qualquer tipo de solução simplista, voltada a afastar os “elementos problemáticos” do cenário.

Em suma, se não podemos contar com soluções amplas e globais para a questão apresentada, é urgente travar o debate quanto a coordenação de competência para acordos decisórios, no tocante a infrações contra a Administração, para que haja aperfeiçoamento desse instrumento, incrementando sua efetividade e potencialidades. A garantia de transparência, previsibilidade e segurança jurídica aos administrados acerca dos possíveis resultados de acordo deve ser protegida, para que a sociedade possa melhor se beneficiar dos acordos e colaborações existentes.

______. Supremo Tribunal Federal. MS 35435/DF, MS 36496/DF, MS 36526/DF e MS 36173/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 26/05/2020. Relator: Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, Ata nº 11, de 26/05/2020. DJE nº 138, divulgado em 03/06/2020.

PIMENTA, Guilherme. Balcão único para negociar leniência pode não ser factível, diz especialista. Amanda Athayde Linhares, que coordenou programa de negociações no Cade, lança livro sobre o tema. Portal JOTA, 10 abr. 2019. <https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/empresa-leniencia-entrou-amanda-athayde-21062018>

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo: Rio de Janeiro. Método, 2020. P. 47.


[[3] MS 35.435, MS 36.173, MS 36.496 e MS 36.526

[4] ADI 4764

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