Opinião

O dever do advogado criminalista

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8 de julho de 2020, 17h09

Instaura-se o debate, é tempo propício para esclarecer um pouco da função e da atividade do advogado criminalista.

Desde que assumi a defesa de Fabrício Queiroz tenho sido apontado como uma espécie de defensor universal do governo, que teria aceito a defesa por causa de amizade ou mesmo por causa de atuação profissional pretérita. Chegou-se mesmo a especular que o meu parentesco pudesse ter qualquer influência sobre o teor de decisão judicial proferida por meu tio diga-se, magistrado probo, experiente e valoroso! (Folha de São Paulo, 03/7/2020)

Grande equívoco — todavia, comum de quem desconhece os contornos da atividade profissional do advogado criminal, sua função e, acima de tudo, os seus deveres e ideário.

A função do advogado criminal consiste em patrocinar a defesa de investigados e acusados em procedimentos investigatórios e processos penais, ser voz dos seus direitos legais, defensor da sua liberdade e incansável pesquisador da verdade das provas e da justiça do caso, ao exigir o rigoroso cumprimento do procedimento legal e das garantias fundamentais do acusado.

Para bem explicar em que consiste o dever do advogado não há melhor começo do que apresentar a correspondência trocada por Rui Barbosa e Evaristo de Morais certamente dois dos maiores expoentes da advocacia brasileira em todos os tempos , que constitui a mais elevada lição do múnus da advocacia e, especialmente, do ethos do defensor criminal.

Embora seja obra célebre na academia e nos fóruns, é ainda desconhecida do público em geral. Convêm, pois, a sua apresentação: o contexto histórico é imediatamente posterior às eleições presidenciais de 1910, em que Rui Barbosa foi derrotado por Hermes da Fonseca na disputa entre dois movimentos políticos antagônicos, civilismo e militarismo, em eleições hoje conhecidas como a campanha da "pena contra a espada".

Evaristo de Morais, aguerrido aliado político e amigo fiel de Rui Barbosa, foi procurado para patrocinar a defesa de acusado, Mendes Tavares, que por sua vez cerrara fileiras ao lado de Hermes da Fonseca, sendo-lhes, pois, adversário político. Em evidente conflito de consciência, escreveu Evaristo ao mestre Rui para consultar, mais que sua opinião, sua palavra de ordem: "Devo, por ser o acusado nosso adversário, desistir da defesa iniciada?".

Preocupava também a Evaristo o fato de a opinião pública formada sobre o crime considerar o acusado, Mendes Tavares, indigno de defesa.

Preocupações de três ordens foram, pois, ventiladas na consulta a Rui: o arrivismo político do acusado, o furor jornalístico sobre o crime e a alegação de ser o acusado indigno de defesa.

A acusação que pesava sobre Mendes Tavares era a de ser mandante de homicídio passional, ocorrido em 14 de outubro de 1911, tendo a consulta sido remetida no dia 16 subsequente, respondida em 26 e publicada no Diário de Notícias de 3 de novembro daquele ano, sob o título "O Dever do Advogado".

Em 26 outubro, sobreveio a reposta de Rui, de impressionante força moral retratada em memorável carta doutrinária, guia ético e moral de todos os que tenham o pendor para a profissão: "O furor dos partidos tem posto muitas vezes os seus adversários fora da lei. Mas, perante a humanidade, perante o cristianismo, perante o direito dos povos civilizados, perante as normas fundamentais do nosso regime, ninguém, por mais bárbaros que sejam os seus atos, decai do abrigo da legalidade. Todos se acham sob a proteção das leis, que, para os acusados, assenta na faculdade absoluta de combaterem a acusação, articularem a defesa e exigirem a fidelidade à ordem processual. Esta incumbência, a tradição jurídica das mais antigas civilizações a reservou sempre ao ministério do advogado. A este, pois, releva honrá-lo, não só́ arrebatando à perseguição os inocentes, mas reivindicando, no julgamento dos criminosos, a lealdade às garantias legais, a equidade, a imparcialidade, a humanidade".

Enaltecia Rui também a importância do advogado, especialmente na defesa de acusados por crimes que açulassem a irritação popular, quando então o acusado passa a revestir a "condição de monstro sem traço de procedência humana. A seu favor não se admite uma palavra. Contra ele tudo o que se alega ecoará em aplausos", casos em que, no interesse da Justiça e de toda a sociedade, o advogado deve assumir e exercer com afinco a defesa, ainda sob o risco da impopularidade.

Sobre a questão de ser o acusado adversário político de ambos, Rui vaticina: "(…) Em mais de uma ocasião, na minha vida pública, não hesitei em correr ao encontro dos meus inimigos, acusados e perseguidos, sem nem sequer aguardar que eles me solicitassem, provocando contra mim desabridos rancores políticos e implacáveis campanhas de malsinação, unicamente por se me afigurar necessário mostrar aos meus conterrâneos, com exemplos de sensação, que acima de tudo está o serviço da justiça. Diante dela não pode haver diferença entre amigos e adversários, senão para lhe valermos ainda com mais presteza, quando ofendida nos adversários do que nos amigos".

Tais palavras têm autoridade para demonstrar que o arrivismo político não deve ser causa de aceitação ou recusa de nenhuma defesa, nem sequer deve o advogado se inibir diante de ataques que sofra no rigoroso cumprimento do seu dever profissional.

Também sobre a afirmada indignidade de defesa, Rui aferrou a mais corajosa e magnânima opinião: "Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova: e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só́ apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou menor, da liquidação da verdade, cujo interesse em todas se deve acatar rigorosamente".

Ante essa desafiadora experiência profissional, fez Evaristo de Morais apostilar em suas conhecidas "Reminiscências", alerta que ainda hoje verbera aos ouvidos dos advogados: "Tomai cuidado com os impulsos do vosso brio profissional, com o impetuoso cumprimento do vosso dever, nesses casos de prevenção coletiva: se seguirdes tais impulsos, tereis de suportar desde os insultos mais soezes até à manhosa dissimulação das vossas razões e dos vossos argumentos de defesa. Por pouco vos dirão que tivestes parte na premeditação do crime e que, com defendê-lo, só́ buscais o lucro pecuniário, o prêmio ajustado da vossa cumplicidade na urdidura do plano criminoso. Mas, se um dia tiverdes de vos defrontar com esta situação de um lado o infeliz que exora, súplice, o vosso patrocínio, de outro lado, a matilha que anseia para o despedaçar sem processo recordai-vos das sentenciosas palavras desse que não tem igual no seio da nossa classe, desse que é por todos os mestres reputado Mestre e cujo nome fora supérfluo citar, de novo. Recebi-as eu, como lição suprema e definitiva, em um dos mais angustiosos transes da minha carreira forense" ("Reminiscências de um rábula criminalista", 1922, pp. 290-291).

Também não difere substancialmente dessas lições a resposta dada por Sobral Pinto à perplexidade daqueles que não compreendiam como aquele imenso advogado, católico fervoroso, fosse capaz de defender os maiores expoentes do comunismo nacional da época: Luiz Carlos Prestes e Harry Berger, presos após a denominada Intentona Comunista de 1935, evento histórico que levou à reação autoritária de Getúlio Vargas, culminando na criação do Tribunal de Segurança Nacional (TSN) e da Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo.

A resposta convicta e inabalável de Sobral àqueles que não conseguiam disfarçar a indignação era a de que, professando a fé católica, ele não poderia deixar de atender a exortação do Evangelho, sumariada por Santo Agostinho na consagrada fórmula: "Odiai o pecado, amai o pecador" ("Por que defendo os comunistas?",1979).

Para encerrar, também válido recordar o testemunho vívido daquele que é considerado, ainda hoje, o príncipe dos advogados criminalistas, Waldir Troncoso Peres, da condição e do papel da defesa criminal, quando, em entrevista televisiva, asseverou: "Eu, quando defendo, eu não julgo; eu não enuncio um juízo de valor a respeito da conduta do meu cliente. Eu discuto se ele praticou ou não praticou o fato; se o fato é criminoso ou se o fato não é criminoso e discuto as razões pelas quais ele praticou o fato. A consequência da minha defesa extrapola o meu juízo crítico, não é da minha responsabilidade. O meu proselitismo não é a favor da tese da violência, é em favor de um homem que pode ter sido o opressor de ontem e é o oprimido de hoje: o réu é sempre o oprimido" ("Jogo da Verdade", 1982, programa televisivo).  

Essas lições dos grandes mestres ecoam atuais, mesmo após o curso do último século, e devem ser lembradas para reacenderem no espírito de todos os advogados a certeza da importância do seu múnus e a firme devoção à eterna busca de realização dos ideais de Justiça.

Nisso também se assemelha o mister profissional à atividade médica- analogia que me agrada recorrer socorrer os necessitados, alguns de saúde, outros de liberdade. Algum médico deixaria morrer contra seu juramento pessoa gravemente ferida, por causa de suas posições políticas, ideologia ou crenças?

Seria aceitável a conduta de médico em recusar atendimento urgente e emergencial a paciente pelo critério de ser flamenguista ou botafoguense? Evangélico, católico ou kardecsista? Conservador ou progressista? Seriam esses fatores de seleção compatíveis com o mandamento que jurou honrar?

Também assim é a atividade profissional do advogado, a quem pouco importa o lado, as crenças religiosas ou convicções políticas e ideológicas do seu constituinte. O que lhe interessa é a defesa incondicional da legalidade e da liberdade. Inevitável socorrer-me novamente da confissão de Rui: "Nunca vi oprimidos os meus adversários, que me não inclinasse para eles".

Portanto, para além de discutir ou revelar as minhas concepções políticas, opiniões e crenças filosóficas embora as tenha —, presta-se este breve escrito à demonstração, versada na pena dos mestres da profissão e ao longo dos séculos, sobre ser indiferente ao advogado a posição política, as crenças ou inspirações filosóficas daqueles que, sofrendo as angústias da persecução penal, venham a buscar a sua defesa técnica e profissional.

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