Opinião

Eficácia do artigo 116 do CTN deve estar condicionada à regulamentação

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7 de julho de 2020, 7h13

Nas últimas décadas, poucos assuntos suscitaram tanta polêmica nas esferas jurídica e empresarial quanto o tema relativo aos limites do planejamento tributário. Grande parte da controvérsia tangencia a regra imposta pelo parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, introduzido no ordenamento jurídico no ano de 2001 pelo artigo 1º da Lei Complementar nº 104.

Batizada de norma geral antielisiva, referida cláusula confere à autoridade fiscal a prerrogativa de desconsiderar atos e negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo. Embora a parte final do dispositivo condicione sua aplicabilidade a procedimentos a serem estabelecidos por lei ordinária, aproxima-se o 20º aniversário de sua entrada em vigor sem que o Poder Legislativo o tenha regulamentado.

Sem a necessária e aguardada normatização da regra, constituiu-se no Brasil um quadro de insegurança jurídica onipresente no campo do planejamento tributário. De um lado, o silêncio ensurdecedor do nosso Parlamento deixa ao desamparo o contribuinte, desprovido de referências legais para nortear suas operações. De outro, a ausência de regulamentação acabou sendo traduzida, na prática, em uma espécie de carta branca aos agentes fiscais, dotando-os de poderes ilimitados para desconsiderar estruturas e operações jurídicas com fundamento, em última instância, em suas convicções pessoais.

Com o início do julgamento da ADIn nº 2446/DF, contudo, o contribuinte começa a enxergar uma luz no fim do túnel contra certos excessos cometidos pela fiscalização em face da ausência de regulamentação da norma geral antielisiva, sobretudo em casos envolvendo planejamento tributário.

Referida ADIn, proposta em 18 de abril de 2001 pela então Confederação Nacional do Comércio, questiona a constitucionalidade da norma, sob a alegação de que o Direito brasileiro não permite a desconsideração de atos jurídicos lícitos com base em uma interpretação econômica dos fatos. Vale assinalar que de lá para cá outros vícios de inconstitucionalidade da norma foram apontados com base em novos argumentos, os quais não fazem parte da ação e, portanto, não serão objeto de exame nessa oportunidade.

Iniciado o julgamento virtual pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no dia 12 do mês passado, a relatora da ação, ministra Cármen Lúcia, apresentou um voto, até certo ponto, positivo para o contribuinte.

Embora tenha negado provimento ao pedido da confederação, a ministra laborou uma interpretação do dispositivo conforme a Constituição, oferecendo uma série de elementos capazes de delimitar o âmbito de aplicação da norma.

Em primeiro lugar, proclama que a plena eficácia do parágrafo único do artigo 116 do CTN depende de lei ordinária regulamentadora.

Ademais, tocando em um tema de grande relevância, a relatora manifesta entendimento convergente com aquele defendido pelo contribuinte ao longo dos últimos anos, no sentido de que a norma não o proíbe de organizar suas atividades com o objetivo de obter economia tributária, desde que, obviamente, o faça por meio das vias legítimas e de condutas coerentes com a ordem jurídica.

Extrai-se de tal proposição que o ordenamento jurídico permite ao contribuinte planejar suas atividades da forma que menos o onere, mediante a prática de atos lícitos, ainda que disso resulte uma carga fiscal inferior à que recairia em uma estrutura diversa e mais importante ainda que a economia fiscal represente a principal razão para a organização de suas atividades.

Tal posicionamento foi reforçado pelas considerações finais apresentadas no voto no sentido de que o parágrafo único do artigo 116 representa norma de combate à evasão fiscal, ou seja, destina-se a reprimir atos fraudulentos e praticados com má-fé com o objetivo de suprimir, reduzir ou diferir o pagamento de tributos.

Desde 2001, autoridades fiscais dos três níveis de governo se respaldam na teoria do propósito negocial apoiada na chamada norma geral antielisiva para autuar contribuintes escorando-se na alegação de que a estruturação de suas atividades ocasionou redução tributária, mesmo diante de operações lícitas, transparentes e legítimas. O denominador comum das autuações é justamente a indicação de economia tributária como o principal fator do arranjo jurídico delineado pelo contribuinte, o que, segundo alegam, revelaria ausência de propósito negocial.

Como se não bastassem as autuações fincadas em concepções arbitrárias e infundadas, impõem ainda a cominação de multas qualificadas, em um verdadeiro exercício de intimidação ao sujeito passivo. É evidente que existem abusos cometidos por parte do contribuinte e eles devem sofrer as penas da lei. No entanto, é preciso separar o joio do trigo.

O voto da ministra Cármen Lúcia simboliza um marco jurisprudencial significativo nos domínios do planejamento tributário, na medida em que fornece elementos referenciais concretos para aplicação do parágrafo único do artigo 116 do CTN, suprindo sua momentânea falta de regulamentação, cujos efeitos atingem um universo extenso de operações, não apenas na esfera federal, como também de tributos estaduais e municipais. Vale salientar que o seu voto foi seguido pelos ministros Marco Aurélio, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes.

Dada a relevância e a densidade da matéria, reflexões adicionais certamente sobrevirão com a manifestação dos demais ministros na retomada do julgamento, enriquecendo o debate e a jurisprudência no âmbito da Corte Suprema. Esperava-se que o parágrafo único do artigo 116 fosse declarado inconstitucional pelo Plenário, o que ainda é possível. De qualquer forma, ainda que não o seja, espera-se que ao menos seja confirmado o entendimento no sentido de que sua eficácia está condicionada à pertinente regulamentação, a qual, nos termos do voto da relatora, deve prever sua aplicação a casos específicos envolvendo fraude e má-fé.

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