E o desembargador Rangel decidiu conforme sua consciência!
2 de julho de 2020, 8h00
Então, vamos lá. Na Folha de São Paulo, consta que
"o Desembargador que concedeu foro a Flávio Bolsonaro diz que agiu guiado por sua consciência e pela Constituição."
Como sempre — e me sinto autorizado, já que falo do "decido conforme a consciência" (meu livro sobre o assunto está também em espanhol: La llamada conciencia de los jueces (editora B de F) há muitos anos (ver também aqui) —, como hermeneuta, tenho de trazer as perguntas chatas.
Começo pelo paradoxo: ora, decidiu guiado pela consciência e pela Constituição? Como assim? Se a decisão segue o que diz a Constituição, imagino que não seja necessário guiar-se "pela consciência", certo?
Mas a pergunta fundamental, e é ainda anterior, é a que dá o título a meu livro que mencionei: O que é isto — decido conforme minha consciência? Qual é o critério? O Direito não serve exatamente para que o juiz não decida com base em algo que não seja a própria consciência?
O fundamento de uma decisão jurídica não deve ser… jurídico? Permito afirmar: juízo de consciência é juízo moral. Logo, a decisão foi simplesmente produto de um juízo moral. Consequentemente, não foi Direito.1 A menos que consciência e constituição (sempre) coincidam (seria a primeira constituição da história que teria essa característica).
Sigo com o jornal Folha de São Paulo, em que consta: "Ele [desembargador Rangel] afirma que o entendimento firmado no STF sobre o tema não se aplica ao caso." Nem irei falar aqui do fato de Rangel ter escrito o contrário do que votou. Quero falar deste outro assunto:
“quando, afinal, o Desembargador age conforme a consciência? Quando escreve o/um livro ou quando decide?”
Eis a questão. E nisso nem preciso dizer em que momento ele acerta. Ou erra.
Penso que, para além do problema dogmático, o busílis da decisão do Desembargador Paulo Rangel está no ponto em que, ao dizer que decidiu conforme sua consciência, revolveu um chão linguístico poroso, quase um charco epistêmico. Pura areia movediça.
Explico. Trata-se do problema (recorrente) do sujeito da modernidade. Da filosofia da consciência. É a “linguagem interior” se sobrepondo aos “constrangimentos externos”, conforme explico, em detalhes, em meus Diálogos com Lenio Streck e Dicionário de Hermenêutica.
Sabemos que o sujeito da modernidade sempre se apresentou “consciente-de-si-e-de-sua-certeza-pensante”. Ele, o sujeito, tem tanta certeza que ignora o que vem de fora (por exemplo, no caso de um juiz, daquilo que vem da Constituição). No fundo, a frase “decido conforme minha consciência” apenas mostra que esse sujeito moderno continua por aí. Forte. Não é um mero fantasma.
Eis aí, portanto, o problema principal que envolve a aplicação do Direito no Brasil: é a tirania do subjetivismo. A ditadura do (que resta do) sujeito da modernidade.
J. F. Mattéi, com seu La barbarie intérieure nos diz que é no interior do homem que precisamos detectar as tendências a cair na barbárie. Ela está no subjetivismo (também vale referir Ernildo Stein, Puntel, Bloch, Abaggnano, Hannah Arendt, Horkheimer, Adorno). Para os céticos, é impagável a obra Sulle Spalle dei Giganti (Nos ombros dos gigantes), de Umberto Eco. Ele arrasa com o relativismo.
O que venho dizendo há décadas é que, em uma dogmática jurídica como a brasileira, com reforço de diversas teorias jurídicas, esse sujeito “indomado” é incentivado a agir. Por que será que Habermas é tão radical em relação ao sujeito moderno? Nem preciso de Gadamer para dizer isso.
Por isso, mesmo sem querer, quando alguém, para justificar uma decisão qualquer, diz que o fez baseado em sua consciência, está dizendo…a verdade. Ao errar, acerta. A pergunta que fica é:
- De que modo, em uma democracia, o que você tira de seu interior pode valer mais que aquilo que foi construído intersubjetivamente?
- Uma opinião, um juízo moral ou político, pode valer mais do que o Direito?2
- Se sim, aguente as consequências, quando seus embargos forem liquidados com argumentos do tipo “livre convencimento” ou “não é necessário enfrentar todos os argumentos, quando o juiz já está convencido…”. Quer dizer: convenceu-se internamente, sendo inútil ficar sabendo de coisas que poderiam fazê-lo mudar sua convicção já tomada de antemão…!
- Enfim, novamente há que se perguntar: a consciência, os juízos pessoais podem valer mais do que a linguagem pública?
- Se você responder que sim, tem um ônus. Experimente fazer isso no cotidiano. Chame uma coisa de outra coisa. Pratique o relativismo. Se estiver caindo no precipício e for avisado de que está sem paraquedas, diga “ah, isso é na sua opinião”. É possível dar às palavras o sentido que se quer? Ah, é difícil? Ah, é impossível agir assim?
- Mas, então, por que no Direito isso é possível? Eis a pergunta de um milhão de raciocínios epistêmicos.
1 Por favor, que ninguém venha dizer que estou cindindo direito e moral. Seria cansativo reexplicar esse tema, depois de milhares de páginas que escrevi sobre o que é isto – o positivismo jurídico e a relação direito-moral. Remeto a discussão para o verbete Positivismo, no Dicionário de Hermenêutica.
2 Remeto o leitor recalcitrante à nota de n. 1.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!