Opinião

A contratação de serviços técnicos especializados e o dano in re ipsa

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2 de julho de 2020, 9h11

Ao meditar sobre o tema referente à modalidade presumida de dano, oriundo da mera contratação com a Administração Pública, sem a efetivação de licitação, denominada dano in re ipsa, deparei-me com a leitura das observações, sempre brilhantes, do douto professor Luciano Ferraz no sentido de que a aplicação desse dano presumido configura uma nova modalidade de improbidade administrativa, sem previsão legal, como deixou claro em artigo publicado nesta ConJur.

Não há como discordar dele, vez que efetivamente a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a partir do julgamento do AgRg nos EDcl no AREsp 419.769/SC, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 18 de outubro de 2016, passou a proclamar o seguinte, que se colhe desse v. acórdão: "A fraude à licitação tem como consequência o chamado dano in re ipsa, reconhecido em julgados que bem se amoldam à espécie".

A par de o julgado falar em fraude (que é um conceito muito mais gravoso do que a interpretação sobre o cabimento ou não de uma regra excepcional), a ideia por ele traduzida é simplista: a não efetivação da licitação, quando devida, pressupõe a não obtenção do preço mais baixo, e, via de consequência, um pretenso dano pecuniário, que não raro implica todos os partícipes da contratação direta, sem licitação.

Com efeito, nesse julgado do STJ reporta-se o seu relator especialmente a dois precedentes, entre os quais a decisão no REsp 1.280.321/MG, de relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, do qual se colhem os seguintes tópicos:

"No mais é de se assentar que o prejuízo ao erário, na espécie (fracionamento do objeto licitado, com ilegalidade de dispensa de procedimento licitatório) que geraria a lesividade apta a ensejar a nulidade e o ressarcimento ao erário, é in re ipsa, na medida em que o poder público deixa de, por condutas de administradores, contratar a melhor proposta (no caso em razão do fracionamento e consequente não realização da licitação, houve verdadeiro direcionamento da contratação).

(…)

Dessa forma, milita em favor da necessidade de procedimento licitatório à contratação a presunção de que na sua ausência, a proposta contratada não será a economicamente mais viável e menos dispendiosa, daí porque o prejuízo ao erário é notório. Precedente: REsp 1.190.189/SP, de minha relatoria, Segunda Turma, DJe 10.9.2010".

Como se verifica, o dano in re ipsa consiste na presunção de que a não realização de licitação, a contratação direta, traduz-se numa presunção de dano, ao permitir a suposição de que a proposta contratada necessariamente "não será economicamente mais viável e menos dispendiosa". Ou seja: compreende-se incidir uma presunção de dano econômico-financeiro no contrato, vez que a licitação possibilitaria a escolha da oferta do preço sempre mais baixa, e, portanto, menos dispendiosa.

Se assim o fosse, mutatis mutandis, decorreria que essa pretensa presunção não haveria de ser aplicável às hipóteses em que a licitação não objetiva o menor preço, mas, sim, a melhor qualidade técnica. É curial que a lei de licitações (Lei 8.666/93) dispõe de procedimentos de seleção que não consideram o preço como critério comparativo das propostas para eleger a melhor.

É o que ocorre, por exemplo, com a contratação dos serviços técnicos profissionais especializados, elencados no artigo 13 da Lei 8.666/93 [1], cujo parágrafo primeiro elege como modalidade licitatória por excelência aplicável o concurso e não as modalidades baseadas em preço (convite, tomada de preços, concorrência, leilão, pregão).

Dispõe o §1º do artigo 13 da Lei 8.666/93 que "ressalvados os casos de inexigibilidade de licitação, os contratos para a prestação de serviços técnicos profissionais especializados deverão, preferencialmente, ser celebrados mediante a realização de concurso, com estipulação prévia de prêmio ou remuneração" [2].

É de suma clareza que quanto a tais serviços especializados, a modalidade da licitação prevista na lei é prioritariamente o concurso, que não objetiva ipso facto ou presumidamente a obtenção da proposta menos dispendiosa para a Administração Pública, senão aquela de melhor qualidade técnica.

Isso significa dizer que a ausência de realização do concurso como modalidade de licitação calcada em aspectos técnicos não induz a uma presunção de dano ou qualquer coisa do tipo, pelo que se mostra inadequada a aplicação da teoria do dano in re ipsa às contratações diretas de serviços técnico profissionais descritos no artigo 13 da Lei 8.666/93 [3].

Por outras palavras, se a previsão legal preconiza o concurso, como forma por excelência de se licitar serviços técnicos especializados quando não contratados diretamente, como a lei autoriza —, evidentemente ostenta o inquestionável objetivo de buscar a melhor técnica, decorre daí a conclusão do descabimento da presunção de dano nas hipóteses em que o contrato tem como objeto serviços técnicos-especializados, e não se direciona ao menor preço, ou à maior vantagem financeira.

Em suma, onde a lei prevê que a técnica deve preponderar, como objeto de realização do interesse público, não pode incidir presunção de dano econômico-financeiro, pela mera ausência de um procedimento competitivo lastreado em preço.

 


[1] Para os fins da Lei 8.666/93, dispõe o caput do artigo 13 que devem ser considerados serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou executivos; pareceres, perícias e avaliações em geral; assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras; assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias; fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços; patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas; treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; restauração de obras de arte e bens de valor histórico.

[2] O concurso, enquanto modalidade de licitação, é a licitação entre quaisquer interessados para escolha de trabalho técnico, científico ou artístico, mediante a instituição de prêmios ou remuneração aos vencedores, conforme critérios previstos no edital (artigo 22, §4º da Lei 8.666/93).

[3] Nesse sentido, cabe notar que o precedente relatado pelo ministro Campbel Marques, utilizado pelo ministro Herman Benjamin para iniciar a trajetória da teorização sobre o dano in re ipsa nas contratações públicas, trata de fracionamento de despesas fraudulento com o mote de diminuir o valor econômico das contratações e fugir da licitação, e não de contratação direta de serviços técnicos especializados, licitáveis preferencialmente por concurso ou contratáveis pela via da inexigibilidade.

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