Opinião

A proibição de se recolher bens de moradores de rua e o utilitarismo

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10 de fevereiro de 2020, 6h05

Notícia do último dia 25 de janeiro[1] destacou uma decisão liminar da juíza Dele Denardin Zydek, da 5ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba, que proibiu a prefeitura de Curitiba de recolher ou apreender pertences de pessoas em situação de rua. A decisão foi tomada após pedido de uma ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública.

Veja um trecho em destaque da decisão:

Merece ser coibida a prática perpetrada por agentes públicos municipais consistente no confisco dos pertences, estes entendidos como aqueles não abandonados (cobertores, colchões, vestuários, sacolas, remédios, documentos, alimentos etc.) da população em situação de rua, estando elas em grupo ou sozinha, e os objetos estando em bom estado ou não.

A dúvida que fica é a seguinte: do ponto de vista jurídico a decisão está correta? E moral?

A análise jurídica da decisão não há margem para dúvidas, uma vez que um dos fundamentos utilizados pela magistrada foi a garantia da dignidade da pessoa humana da população de quem vive em situação de rua[2]. Nada mais justo.

Além disso, cabe destacar a atuação do Poder Judiciário como mecanismo de defesa das minorias (que poderiam ser prejudicadas em seus direitos), diferentemente dos demais poderes que constituem a República (Legislativo e Executivo), sendo poderes políticos eleitos pela maioria. Portanto, é de fundamental importância a noção da tutela dos direitos das minorias pelo Judiciário (papel contramajoritário), embora suscetível de crítica por parcela considerável da sociedade.

Sob o ponto de vista moral, é necessário ter em mente a ideia filosófica do utilitarismo, doutrina encabeçada pelo inglês Jeremy Bentham (1748-1832), que tem como principal premissa o objetivo de maximizar a felicidade para o maior número de pessoas da comunidade[3].

Pois bem, mas o que isso tem a ver com a decisão do juízo da 5ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba? Explico. Bentham acreditava que seu princípio da utilidade era uma ciência da moral que poderia servir como base para reforma política[4].

Um dos planos do filósofo inglês foi justamente uma estratégia para “melhorar o tratamento dado aos pobres” e pessoas que viviam nas ruas por meio da criação de uma espécie de reformatório autofinanciável para abrigá-los[5].

Bentham percebeu que o fato de haver mendigos nas ruas reduzia a felicidade para a maioria das pessoas de uma comunidade. Assim, propôs a remoção dos mendigos das ruas, confinando-os em abrigos[6].

Nesse sentido, aplicando-se a lógica utilitarista de Jeremy Bentham a decisão da magistrada foi, sob o ponto de vista moral, equivocada, tendo em vista que a Prefeitura de Curitiba, seguindo o espírito utilitarista, visou o objetivo atrelado ao filósofo inglês de tentar “promover um bem-estar geral”, resolvendo um problema que afeta o espaço de convívio daquela comunidade.

Ocorre que essa doutrina sofreu e sofre inúmeras críticas. A crítica mais acentuada e que revela maior vulnerabilidade da doutrina utilitarista é exatamente o fato de não respeitar os direitos individuais e a dignidade da pessoa humana, tendo em vista que apenas aceitar a máxima vontade da felicidade de uma maioria em detrimento de indivíduos isolados pode representar um desrespeito muito cruel numa sociedade.

Além disso, para os utilitaristas, os indivíduos têm sim importância, mas apenas enquanto as preferências de cada um forem consideradas em conjunto com as de todos os demais[7]. Seguindo essa lógica, as pessoas que vivem em situação de rua teriam seus direitos individuais e a sua dignidade como pessoa humana violados.

A segunda principal objeção ao utilitarismo, de acordo com o professor de filosofia política de Harvard, Michael J. Sandel, é que a doutrina estabelece valores em moeda comum aos sacrifícios numa sociedade, como se as preferências de todos tenham o mesmo peso e valor.

Ora, o autor faz a seguinte pergunta: será possível traduzir todos os bens morais em uma única moeda corrente sem perder algo na tradução?[8]

A crítica revela que não, justamente porque não podemos sopesar valores morais numa sociedade como aplicada em uma análise de custo e benefício, ou seja, como meros instrumentos monetários. Immanuel Kant (1724-1804), por exemplo, refuta essa ideia principal do utilitarismo ao revelar que a moral não diz respeito ao aumento da felicidade ou a qualquer outra finalidade, mas, ao contrário, ela está fundamentada no respeito às pessoas como fins em si mesmas[9].

As ideias de Kant bateram de frente com a máxima utilitarista, uma vez que atribuiu o respeito à dignidade da pessoa humana em sua filosofia moral. Tanto é que suas ideias ultrapassaram as barreiras da Europa e serviram de alicerce para as principais Constituições que viriam após a publicação de sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), como a Constituição Francesa de 1791, após a Revolução de 1789.

Portanto, sob o ponto de vista moral e político, a decisão da magistrada da 5ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba é suscetível de críticas. A principal crítica advém de uma perspectiva utilitarista no sentido da negação da máxima felicidade para o maior número de pessoas.

Por outro lado, a garantia da tutela dos direitos individuais e o respeito à dignidade da pessoa humana, no caso, das pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade nas ruas, é estabelecida como valor máximo de amplitude constitucional.

Referências
https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2020/01/25/prefeitura-de-curitiba-e-proibida-de-recolher-pertences-de-moradores-de-rua.ghtml

SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.


[2] Art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

[3] SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 48.

[4] Idem, p. 49.

[5] Idem.

[6] Idem, p. 50.

[7] Idem, p. 51.

[8] Idem, p. 55.

[9] Idem, p. 137.

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