Opinião

Divisão sexual do trabalho: a repetição de paradigmas na era da revolução digital

Autor

  • Vanessa Karam de Chueiri Sanches

    é juíza titular do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR) mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-PR e integrante da Comissão de Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados e Magistradas do Trabalho (Anamatra).

14 de dezembro de 2020, 19h29

Inicio este artigo com uma pergunta: por que, em pleno século 21, precisamos falar sobre divisão sexual do trabalho? Quando discussões surgem envolvendo esta questão poucos se fazem essa pergunta. Na maioria das vezes, essa temática é discutida a partir de exemplos pragmáticos no sentido de tentar justificar a existência da divisão, seja para criticá-la, seja para concordar com os exemplos que são postos. No entanto, isso responde à pergunta inicial?

Antes de tentar responder a essa indagação, alguns apontamentos precisam ser feitos.

Em artigo publicado sob o título, "Divisão sexual do trabalho e as relações de sexo", a socióloga francesa Daniele Kergoat [1] afirma que "as condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um destino biológico, mas sobretudo, construções sociais". E que "a divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente adaptada a cada sociedade. Tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres a esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (política, religiosa, militares)".

O que isso quer dizer? Que a divisão sexual de trabalho entre homens e mulheres decorre não de fatores biológicos que os determinam, mas, sim, daquilo que a sociedade impõe, estabelece, define, para cada um, de acordo com seu gênero. Ou seja, aqueles argumentos simplistas e superficiais, pautados em exemplos pragmáticos de atividades que, pelas suas características físicas, devem ser atribuídas a homens e outras a mulheres não se sustenta.

Essa reprodução social de papéis precisa e deve ser questionada, sob pena de perpetuação, independentemente da evolução social que imaginamos estar vivendo ou que possamos alcançar.

Nesse contexto, mais uma questão pode ser formulada. O que comumente vem no imaginário das pessoas quando escutam a expressão "divisão sexual de trabalho"? Cito aqui alguns exemplos: a divisão sexual de trabalho ocorre porque homens são mais aptos a atividades que exigem força e mulheres a atividades de cuidado; ou, homens devem desenvolver atividades que garantam o sustento de suas famílias, para as que as mulheres se dediquem as tarefas do lar; os homens tem mais capacidade para se colocar à frente de situações que exigem embate, pois as mulheres são mais frágeis para encarar discussões; ou, ainda, os homens tem mais aptidão para a política, atividades de iniciativa e cargos de gestão, pois as mulheres são mais emotivas.

Inúmeros outros exemplos ainda poderiam ser mencionados de situações predefinidas no imaginário das pessoas (e não estou falando que isso acontecia no século XIX, não, estou falando de situações que aconteciam, sim, no século XIX e que continuam sendo reproduzidas no século XXI), fruto dessa construção social mencionada no início, mas fruto também do que Daniel Kahneman chama de vieses da intuição [2].

A palavra "viés" pode designar preconceito, tendência, propensão, inclinação. Assim, quando falamos de vieses inconscientes estamos falando daquelas questões que são formadas na nossa consciência e que pautam as nossas decisões sem que percebamos a sua influência nelas. E o que isso tem a ver com a divisão sexual de trabalho?

Quando no início deste artigo aponto que a divisão sexual de trabalho é uma construção social, é natural que as pessoas inseridas em determinadas sociedades reproduzam aqueles modelos que elas estão acostumadas nas suas relações pessoais e familiares igualmente nos ambientes e nas divisões de trabalho. Dessa forma, se vivemos numa sociedade patriarcal, de supremacia branca, na qual os homens brancos, heterossexuais, são definidos e vistos como chefes de famílias e das estruturas de poder, qual a chance de um homem ser igualmente visto ou idealizado como chefe de uma corporação ou ocupante de elevados cargos na esfera política? Bastante grande.

Ao contrário, se estamos acostumadas a ver mulheres assumindo tarefas domésticas, de cuidados de outrem, de serviços, qual a probabilidade de que essas mulheres se mantenham inseridas em atividades que exijam este tipo de habilidade, ainda que igualmente aptas às referidas atividades de chefia e gestão?

Quando crianças começam a desenvolver as suas brincadeiras, despidas de qualquer intenção quanto ao seu projeto de vida profissional, não é comum estabelecermos a elas o estereótipo cultural de uma profissão [3]?

Ainda que alguma evolução já seja verificada, na medida em que atualmente as mulheres ocupam um espaço bem maior no mercado de trabalho, inclusive em atividades que eram tipicamente masculinas, é importante ressaltar que muitas dessas ocupações não foram fruto da alteração dos padrões patriarcais ou porque estes viés foram revistos, mas, sim, porque a inserção de mulheres em algumas atividades representou e representa significativo incremento no mercado consumidor, o que, dentro da sociedade capitalista, é um dado bastante significativo. Além disso, há nesta situação um antagonismo paradoxal, que as sociólogas francesas Helena Hirata e Daniele Kergoat [4] chamam de "modelo de delegação", pelo qual, "para que mulheres consigam ascender a cargos superiores e executivos, as suas atividades domésticas e de cuidado são delegadas a outras mulheres, mantendo elevado o número de mulheres nestas atividades subvalorizadas" e, muitas vezes, precarizadas e não remuneradas.

A intensão deste artigo não é dar uma visão puramente pessimista da questão, pois é evidente que as mulheres tem, sim, buscado romper estes estereótipos, mas o que precisa ser demonstrado é que muitas decisões são tomadas neste contexto, e aqui incluo decisões tomadas por homens e mulheres, a partir de padrões que estão postos, inclusive, no nosso inconsciente.

Infelizmente, tais padrões continuam sendo reproduzidos quando analisamos exemplos vinculados a questões tecnológicas, no contexto da denominada revolução digital ou quarta revolução industrial.

Recentemente foi publicada uma reportagem com cujo título era "Pandemia acelera a utilização de chatbots e levanta a discussão sobre machismo" [5]. O chatbot é um software que conversa com uma pessoa de maneira natural e ajuda a resolver determinados problemas. Essa reportagem, na verdade, se referia ao uso de assistentes virtuais (robôs), que prestam atendimento automático nos canais digitais das empresas. Mas o que isso tem a ver com o machismo, e mais, com a divisão sexual de trabalho? Segundo a reportagem, constatou-se que a maioria esmagadora das assistentes virtuais reproduziam padrões femininos de atendimento e, inclusive, eram representadas por mulheres jovens e sorridentes [6].

Conforme restou concluído na matéria mencionada, "a ampla adoção de personas femininas como assistentes virtuais tem ligação direta com a ideia, arraigada na sociedade, de que as mulheres têm 'vocação natural' para servir com simpatia e cuidado, mantendo-se lógica semelhante àquela aplicada às funções como empregada doméstica, babá, secretária, tradicionalmente associadas a figuras femininas" [7] e que são, consequentemente, reproduzidas, na divisão sexual de trabalho.

A transformação digital, portanto, não foi e não é suficiente para romper com a reprodução de concepções e conceitos ultrapassados e arraigados em nossa sociedade, o que torna premente, presente e necessário, discutir, pensar e repensar a divisão sexual do trabalho também nessa perspectiva.

 


[1] KERGOAT, Daniele. Divisão sexual do trabalho e as relações de sexo. In Dicionário crítico do feminismo. Ed. UESP., p. 67.

[2] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 10.

[3] KAHNEMAN, Daniel. P. 13

[4] HIRATA, Helena, KERGOAT, Daniele. Novas configurações da divisão sexual do trabalho, p. 604.

Autores

  • é juíza titular do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR), mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-PR e integrante da Comissão de Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados e Magistradas do Trabalho (Anamatra).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!