Opinião

Recusa de usar máscara vulnera princípio constitucional do direito à saúde

Autor

  • Carlos Eduardo Ferreira dos Santos

    é mestrando em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) mestre em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha) integra o grupo “Estado Instituciones y Desarrollo” da Asociación Latinoamericana de Ciencia Política e o comitê de pesquisa “Systèmes judiciaires compares” da Association Internationale de Science Politique.

8 de dezembro de 2020, 7h13

É cediço que a contaminação pelo coronavírus é extremamente perigosa para todas as pessoas, independentemente de idade, sexo ou condição social, tendo acometido milhões de vidas. Como forma de evitar o contágio e a propagação às demais pessoas, internacionalmente são adotadas medidas sanitárias, entre as quais se destaca o uso de máscaras.

Em consequência disso, a questão que surge refere-se à legalidade da exigência — mediante decreto — do uso de máscara como medida sanitária desde o início da pandemia, ou seja, desde fevereiro de 2020.

Com efeito, o princípio da legalidade possui assento na Carta Magna, sendo um direito fundamental insculpido no artigo 5º, II da CF/1988: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Sem embargo, o mesmo artigo 5º, caput, da Constituição Federal garante a "inviolabilidade do direito à vida", o artigo 1º, inciso II, declara que o Brasil tem por fundamento a "cidadania", o artigo 3º, inciso I, assevera que é objetivo fundamental "construir uma sociedade solidária", bem como o seu artigo 196 estabelece que a "saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais que visem à redução do risco de doença" [1]. Sendo assim, é dever do intérprete atentar-se aos princípios inerentes à interpretação da Lei Maior, mormente o princípio da unidade da Constituição, que, consoante Konrad Hesse, "em nenhum caso, se contemple a norma isoladamente, mas, ao contrário, sempre no conjunto em que ela deve estar situada, todas as normas constitucionais hão de ser interpretadas de tal modo que se evitem contradições com outras normas da Constituição" [2].

Outrossim, atualmente o conteúdo do vocábulo cidadania alude aos direitos e deveres dos cidadãos, conforme lição de Jürgen Habermas: "Hoje os termos 'cidadania' ou citizenship se utilizam não somente para significar o pertencimento a organização que é o Estado, senão também para significar o status que, no que diz respeito ao conteúdo, vem definido pelos direitos e deveres cidadãos". Em decorrência dos deveres advindos da cidadania, "a tradição própria de cada um deverá ser em cada caso objeto de uma apropriação feita de um ponto de vista relativizado a partir da perspectiva dos demais" [3]. Disso resulta que o uso de máscaras em plena pandemia da Covid-19 não deve ser meramente uma opção individual, segundo a predileção de cada um, mas, ao contrário, a cidadania exige a relativização de escolhas privatísticas em prol da coletividade. Na cidadania, a relação com o "outrem é uma relação não-alérgica, uma relação ética" [4]

Ademais, especificamente acerca do atendimento ao princípio da legalidade como condição para obrigar ao uso de máscaras pelos cidadãos, esclareça-se que, de acordo com o constitucionalista José Afonso da Silva, a legalidade "significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador" [5]. Pois bem, a redação original no caput do artigo 3º da Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, estabeleceu, entre outras, várias medidas para o enfrentamento do coronavírus [6]. Registre-se que o sentido da expressão contida da lei "entre outras" alude a rol meramente exemplificativo, podendo ser adotados outros instrumentos. O artigo 3º, §4º, da citada norma obriga as pessoas a se sujeitarem ao cumprimento das medidas, sob pena de responsabilização nos termos da lei. Como forma de efetivar o combate à doença, o artigo 3º, §7º, faculta o uso de medidas sanitárias pelos gestores locais de saúde. Por conseguinte, ante a previsão expressa na Lei nº 13.979 de 2020, afigura-se atendido o princípio da legalidade na obrigatoriedade do uso de máscaras por meio de decreto municipal ou estadual, eis que o decreto do gestor público local atua dentro da esfera estabelecida pelo legislador nacional, tendo na própria lei ordinária o seu fundamento de validade.

Imperioso ressaltar ainda que os entes federados — União, Estados, Distrito Federal e municípios — possuem competência comum para legislar e adotar medidas sanitárias de combate à epidemia internacional, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal (ADI nº 6.341/DF) [7]. Consectariamente, os entes municipais e estaduais dispõem de competência legal para exigir o uso de máscaras pela população nos seus respectivos territórios desde o início da pandemia, isto é, desde fevereiro do presente ano. Para atingir tal mister, é possível utilizarem-se da publicação de decretos editados pelos gestores locais, em conformidade com o artigo 3º, §7º, da Lei Federal nº 13.979 de 6 de fevereiro de 2020.

Em que pese a legalidade na edição de decreto para exigir dos cidadãos — desde o começo da pandemia — o uso máscara para conter a disseminação do coronavírus, a Lei nº 14.019, de 2 de julho de 2020, expressamente indicou o uso obrigatório de máscaras de proteção individual para enfrentar a emergência de saúde pública, sob pena de multa.

Assim, a nenhum cidadão é facultado pretender eximir-se do dever legal de usar máscaras para evitar a propagação da Covid-19. Caso contrário, restarão vulnerados o princípios constitucional do direito à saúde, os deveres de cidadania e solidariedade, bem como o direito mais importante de todos: a vida humana.

 


[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Acesso em: 3/12/2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.

[2] HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. Texto: Interpretação Constitucional. Traduzido por Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 113.

[3] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho em términos de teoria del discurso. 3ª ed. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 625 e 628.

[4] LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a Exterioridade. 3ª ed. Coimbra: Edições 70, 2014, p. 38.

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 368.

[6] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Legislação Informatizada. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Publicação Original. Acesso em 03-12-2020. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2020/lei-13979-6-fevereiro-2020-789744-publicacaooriginal-159954-pl.html.

[7] STF. Supremo Tribunal Federal. Plenário. ADI nº 6.341/DF. Rel. p/ acórdão: min. Edson Fachin. Acesso em 03-12-2020. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344964720&ext=.pdf.

Autores

  • é advogado, consultor jurídico, membro consultor da Comissão Especial de Direito Penal Econômico do Conselho Federal da OAB, integrante do grupo "Estado, Instituciones y Desarrollo", da Asociación Latinoamerica de Ciencia Política, e do comitê de pesquisa "Systèmes judiciaires compares", da Association Internationale de Science Politique, e mestrando em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha).

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