opinião

A relação entre a LGPD e a apuração da boa-fé contratual

Autor

  • Kristian Rodrigo Pscheidt

    é advogado do escritório Costa Marfori Advogados professor de cursos de graduação e pós-graduação em Direito pós-doutorando em Direito do Estado pela UFPR doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie LLM em Direito de Negócios pela FMU e especialista em Direito Tributário pelo Centro Universitário Curitiba e em Gestão e Legislação Tributária pela Uninter.

7 de dezembro de 2020, 17h13

A Lei 13.709/2018 estipulou um marco regulatório na proteção de dados pessoais, colocando em destaque a questão da saúde. Indicou-se de maneira expressa que os dados relativos à saúde são informações sensíveis, de modo que as hipóteses de tratamento destes estão taxativamente limitadas pelo artigo 11.

Nesse mesmo dispositivo legal, surge a dicção do §5º, que indica que é vedado às operadoras de planos privados de assistência à saúde o tratamento de dados de saúde para a prática de seleção de riscos na contratação de qualquer modalidade, assim como na contratação e exclusão de beneficiários.

De forma expressa na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), está proibido que as operadoras de saúde se utilizem de uma investigação do histórico do paciente para limitar acesso, contratação, bem como a exclusão de eventuais benefícios em razões da vida pregressa do beneficiário.

Pois bem, ocorre que no âmbito da Lei 9.656/1998, que regulamenta os planos de saúde no Brasil, há a autorização legal para que as operadoras fixem um período de exclusão de cobertura em razão de doenças preexistentes.

Doenças ou lesões preexistentes (DLP) são aquelas que o beneficiário ou seu representante legal saiba ser portador ou sofredor, no momento da contratação ou adesão ao plano de saúde.

E na redação do artigo 11 dessa lei, a cobertura às doenças e lesões preexistentes terá início somente após 24 meses da contratação, cabendo à respectiva operadora o ônus da prova e da demonstração do conhecimento prévio do consumidor ou beneficiário dessa doença.

De certo, a indicação de uma DLP no momento da contratação está inserida no dever de transparência e boa-fé contratual, pois a omissão de dados essenciais na prestação do serviço poderá desequilibrar a expectativa econômica das partes.

O Código Civil traz expressamente no artigo 422 que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Portanto, é dever legal do beneficiário trazer essa informação no momento da contratação; mas acaso este se omita, pode a operadora de saúde atuar para comprovar a prática ilícita do consumidor.

Surge então um grande embaraço trazido pela LGPD, pois proíbe as operadoras de saúde de utilizar o histórico do paciente; porém, esse ônus lhe é imposto por outra norma, qual seja, pelo artigo 11 da Lei nº 9.656/1998.

Como então compatibilizar a LGPD (que proíbe a utilização de dados relativos à saúde) com a Lei dos Planos de Saúde (que exige que o plano de saúde comprove a doença preexistente)?

A resolução do conflito de normas
Na literatura jurídica, na análise das antinomias, três critérios devem ser levados em conta para a solução dos conflitos: a) critério cronológico: norma posterior prevalece sobre norma anterior; b) critério da especialidade: norma especial prevalece sobre norma geral; c) critério hierárquico: norma superior prevalece sobre norma inferior.

Se obtemperadas as duas regras, a única diferença entre as normas está no seu aspecto cronológico, clamando-se pela leitura do artigo 1º, §2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Lá está consignado que a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Não houve revogação expressa; mas também não é possível cogitar que uma lei seja incompatível com a outra. Não houve derrogação da norma, e ambas continuam vigentes. A solução então exige outra análise, que é um esforço interpretativo sistêmico de ambas as regras.

Primeiro, é certo que o Direito não pode ser utilizado com subterfúgio para obter vantagem indevida ou enriquecimento sem causa. A norma jurídica deve ser aplicada somente para tutelar interesses legítimos, ou seja, lícitos e protegidos pelo Direito.

A limitação de acesso aos dados pessoais, portanto, não pode ser absoluta. Tanto o é que a própria LGPD expressa a possibilidade de utilização de dados sensíveis garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular, nos processos de identificação e autenticação de cadastro em sistemas eletrônicos.

E ainda é preciso percorrer o caminho da adoção do princípio máximo de justiça, em que a norma deve ser apurada de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito, atendendo-se aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. É a própria redação dos artigos 4º e 5º da LINDB.

Portanto, não se pode cogitar que a LGPD não trouxe nenhuma barreira instransponível para a operadora de saúde apurar o histórico do beneficiário; e tampouco é uma ferramenta que inviabiliza o acesso a qualquer documento ou histórico do paciente.

A nova lei coloca, nesse sentir, uma vedação clara, direta e objetiva nos objetivos dessa investigação. A pretensão da operadora de saúde somente será legítima se os dados colhidos para a verificação do conhecimento prévio do consumidor ou beneficiário dessa doença preexistente foi realizada unicamente para fins de satisfazer o artigo 11 da Lei 9.656/1998.

Autores

  • é advogado do escritório Costa Marfori Advogados, professor de cursos de graduação e pós-graduação em Direito e doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!