Opinião

A pessoa jurídica como vítima do crime de difamação

Autor

  • Felipe Chiavone Bueno

    é advogado criminalista pós-graduado em Direito Processual Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) mestrando em Direito Penal pela PUC-SP membro do IBCCrim do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Comissão Especial de Direito Penal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).

6 de dezembro de 2020, 9h14

O Plenário do Supremo Tribunal Federal rejeitou, por maioria de votos, queixa-crime por difamação proposta pelo Greenpeace Brasil contra o ministro de Estado do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em decorrência de declarações feitas por ele nas redes sociais e à imprensa, em que chamou os ativistas ambientais de "ecoterroristas", entre outras declarações consideradas difamatórias pela organização não governamental [1].

O julgamento, realizado na sessão virtual concluída no última dia 27, reacendeu o antigo debate a respeito da possibilidade de ser a pessoa jurídica vítima do crime de difamação (artigo 139, Código Penal [2]). Para Luciano Anderson de Souza, doutrina e jurisprudência ainda divergem quanto a essa possibilidade, em razão da ausência do valor social e moral da pessoa jurídica, típicos da pessoa física [3]. Em que pese o dissenso, o Plenário do STF reafirmou o entendimento de que a pessoa jurídica pode ser vítima de difamação.

Doutrina e jurisprudência vêm se afastando, gradativamente, da tradicional lição do saudoso penalista Nélson Hungria, coautor do Código Penal, do Código de Processo Penal, da Lei das Contravenções Penais e da Lei de Economia Popular, que dizia que "somente pode ser sujeito passivo de crime contra a honra a pessoa física". Para Hungria, "inaceitável a tese de que também a pessoa jurídica pode, sob o ponto de vista jurídico-penal, ser ofendida em sua honra" [4].

Um argumento recorrente recai sobre o uso do pronome indefinido "alguém" pelo legislador no texto dos "Crimes contra a pessoa" (título I, Parte Especial, CP), especialmente nos "Crimes contra a honra (capítulo V, CP): "caluniar alguém (…)" (artigo 138, CP), "difamar alguém (…)" (artigo 139) e "injuriar alguém (…)" (artigo 140). Parte da doutrina e da jurisprudência defende que não foi por acaso que o legislador optou pelo uso do pronome indefinido "alguém" ao invés de, por exemplo, "alguma coisa". Se apenas faz sentido, por exemplo, falar em matar "alguma pessoa", ou seja, "alguém", também só é possível caluniar, difamar, injuriar "alguma pessoa", "alguém".

Sob essa ótica, o legislador não contemplou a pessoa jurídica como vítima da difamação. Toda a palavra escolhida tem o seu lugar e valor. Elas não são usadas em vão. Incabível alargar arbitrariamente o significado de cada vocábulo escolhido. De acordo com esse posicionamento, parece um exagero esticar o significado do pronome "alguém" para contemplar não só a pessoa física, mas também a jurídica. "Alguém" é alguma pessoa física, sobretudo porque o legislador propositalmente inseriu os "Crimes contra a honra" no título I dos "Crimes contra a pessoa".

Uma rápida leitura do título I (crimes contra a pessoa) da "Parte Especial" revela que a palavra "alguém" aparece 13 vezes (!). Em todas elas, o pronome indefinido "alguém" indica um sujeito de carne e osso, não uma pessoa jurídica. Basta ver, por exemplo, os crimes de ameaça (artigo 147 — "ameaçar alguém"), sequestro e cárcere privado (artigo 148 — "privar alguém"), homicídio (artigo 121 — "matar alguém") etc. Ao contrário desse entendimento, todavia, não é o pronome "alguém" que teria o condão de impedir a extensão da incriminação da difamação à ofensa à pessoa jurídica [5].

A parte especial encontra-se dividida em 11 títulos, tomando-se por base o critério do bem jurídico tutelado. O título I ocupa-se dos "crimes contra a pessoa", dividindo-se em seis capítulos, com as seguinte rubricas: "Dos crimes contra a vida" (capítulo I), "Das lesões corporais" (capítulo II), "Da periclitação da vida e da saúde" (capítulo III), "Da rixa" (capítulo IV), "Dos crimes contra a honra" (capítulo V) e "Dos crimes contra a liberdade individual" (capítulo VI). São crimes que ofendem ou colocam em perigo de forma direta e imediata a pessoa humana. A vida foi eleita como o bem jurídico de maior importância. É a razão de ser do Estado.

Ao tratar dos "crimes contra a honra", a própria exposição de motivos da parte especial do Código Penal dispõe que "seu verdadeiro lugar é entre os crimes contra a pessoa, de que constituem subclasses. A honra e a liberdade são interesses, ou bens jurídicos inerentes à pessoa, tanto quanto o direito à vida ou à integridade física" [6]. Se feliz ou infeliz, o legislador fez uma opção muito clara.

Assim, em decorrência do princípio da reserva legal (artigo 1º, CF; artigo 5º, inciso XXXIX, Constituição da República), insculpido na máxima "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal", bem como no fato de localizarmos os "crimes contra a honra" entre os "crimes contra as pessoas", ou seja, revelando o espírito do legislador, não nos parece acertado estender o crime de difamação aos casos em que a vítima é pessoa jurídica, pois, ao que tudo indica, a norma penal busca proteger a honra das pessoas humanas.

 


[2] Artigo 139 — Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

[3] REALE JÚNIOR, Miguel. Cord. Código penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 414.

[4] PIMENTEL, Manoel Pedro. A pessoa jurídica como sujeito passivo do crime de difamação. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, n. 30, p. 28-37, jul./dez. 1980. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=20643. Acesso em: 2 dez. 2020.

[5] REALE JÚNIOR, Miguel. Cord. Direito penal: jurisprudência em debate. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 191.

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    é advogado criminalista, pós-graduado em Direito Processual Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Universidade de Coimbra, em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), mestrando em Direito Penal pela PUC-SP, membro do IBCCrim, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Comissão Especial de Direito Penal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).

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