Opinião

A valoração axiológica das normas

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1 de dezembro de 2020, 13h12

Imaginemos a seguinte hipótese: alguém desfere um chute numa pessoa. Se causar algum tipo de lesão leve, esse ato é tipificado no artigo 129 do Código Penal e prevê uma pena de detenção de três meses a um ano. Se esse mesmo chute for dado num cachorro, será considerado maus-tratos a animal doméstico e enquadrado no artigo 32, §2º-A, da Lei de Crimes Ambientais, com pena de reclusão de dois a cinco anos. Será que o legislador deixou de considerar o princípio da razoabilidade ao produzir uma lei que valora mais um cão do que uma pessoa?

O tratamento do Direito Penal e do Processual Penal a esses dois casos é completamente distinto, pois na lesão corporal leve o agressor tem direito a fiança na delegacia de polícia e não pode ficar preso. No caso de ser processado, haverá a transação penal ou a suspensão condicional do processo, ou seja, o agressor não será preso ou condenado a alguma pena restritiva de liberdade. Já no caso de maus-tratos a cães e gatos o agressor será autuado em flagrante na fase policial, sem direito a fiança, visto que se trata de crime com pena de reclusão e somente o Poder Judiciário poderá liberar esse autuado. O processado não tem direito a transação penal ou a suspensão condicional do processo, podendo ser condenado a uma pena de prisão.

O Projeto de Lei nº 1095, de 25/2/2019, de autoria do deputado federal Fred Costa (Patriotas-MG), foi transformado na Lei nº 14.064, de 29/9/2020, conhecida por Lei Sansão. Essa lei criou uma qualificadora no artigo 32 da Lei nº 9.605/98 em casos de crimes de maus-tratos se praticados contra gatos e cachorros, prevendo pena de reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda. Ao aumentar as penas, essa norma desestimula violações aos direitos dos animais, para que a crueldade contra esses seres vivos deixe de ser considerada banal ou corriqueira. Porém, os legisladores "esqueceram" de equinos, bovinos, aves, suínos, caprinos, entre outros animais domésticos, que deveriam ter a mesma proteção legal.

O tipo penal está intimamente ligado à concepção de valor. O legislador, por escolha de política criminal, tutela determinados valores e os transforma em bens jurídicos, considerados mais importantes a serem protegidos pelo Direito Penal, em consonância com o princípio da subsidiariedade. Assim, anterior à fase propriamente jurídica de elaboração da lei penal, tem-se uma análise contextual histórico-social do comportamento humano. A inserção de valores sociais em determinados grupos de indivíduos é preponderante para a construção do tipo penal incriminador. Portanto, é óbvio que o direito não tutela senão aquilo que já foi objeto de valoração: em outras palavras, a valoração precede a tutela.

Dessa forma, a criação legislativa, tem-se em primeiro momento a aferição dos comportamentos humanos, considerados importantes pelo legislador, que lesam ou expõem a risco de lesão de valores considerados importantes pelo Direito Penal, transmudando esses valores em bens jurídicos penais. De acordo com cada momento histórico-social, o legislador prescreve, axiologicamente, os comportamentos que serão punidos, por intermédio de normas proibitivas ou mandamentais. Utiliza-se do tipo penal, que é o instrumento que garante ao Estado e aos cidadãos orientar-se de acordo com prescrição constante nos preceitos que o compõe.

Portanto, criminalizar com dureza os maus-tratos a animais domésticos é um marco em nossa evolução civilizatória. Mas "esquecer" que a integridade corporal ou saúde humana também deveriam acompanhar essa modernidade normativa é imperdoável. Se nos afastarmos um pouco da hipocrisia e caminharmos rumo à realidade, perceberemos que o legislador não foi razoável ao valorizar mais o bem-estar animal do que o humano. Que ao menos fosse dado um tratamento igualitário às duas condutas normativas que se quis proteger através do Direito Penal. Afinal, o cachorro é o melhor amigo do homem.

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