Regras de etiqueta ou normas de valer?
1 de dezembro de 2020, 6h04
Desenha-se no Brasil (há muito deixou de ser esboço) a tentativa dos senhores Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia de permanecer como presidentes, respectivamente, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
A aventura é lançada sobre o colo do Supremo Tribunal Federal, que tem o papel de guardião da Constituição da República.
Sabe-se que a tarefa é simples. Até mesmo o comentarista de arbitragem diria que "a regra é clara". Contudo, quando o assunto é a boa-fé do intérprete, a coisa muda de figura.
O jeitinho brasileiro tem na "lei do Gérson" a expressão alegórica do que se traduz por corrupção da lei. Sim, a lei se corrompe quando sobre ela se põe o intelecto infectado pela má-fé. É quando a conformidade com o subjetivismo arrogante e indiferente ao contrato político que sucedeu o período autoritário, se revela a medida da aptidão totalitária.
A Constituição precisa de releituras, sempre e quando sua estabilidade exija. Ela deve refletir o mínimo ético de um povo, porquanto sua dimensão é mais do que jurídica ou política: é compromissória.
Não há dúvidas. Não há espaços vazios, não há lacunas nas normas originárias (as que nasceram no dia 5 de outubro de 1988) porque são normas, inclusive, imunes ao controle de constitucionalidade. Portanto, não há espaços para releituras que envolvam a disposição expressa do texto constitucional que diz:
"Artigo 57
§4º. Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 50, de 2006)".
Há vedação expressa de recondução, prevalecendo, indiscutivelmente, sobre qualquer norma — estamos a falar de Constituição da República —, posto todas as outras estarem em patamar hierárquico inferior.
Nem se pretenda, pela via do ativismo judicial solerte, declarar possível um projeto de emenda à Constituição que, em respeito à autonomia do Poder Legislativo, possa ser elaborado às pressas. A própria iniciativa seria inconstitucional, posto desobedecer de modo claro o princípio da impessoalidade, fonte de inspiração do regime republicano que não tolera os ardis de índole monárquica absoluta.
A elegibilidade dos cargos, a responsabilização dos agentes, a impessoalidade dos mesmos e a alternância de poder são alicerces de um Estado republicano democrático de Direito. Não existe República pessoal, não existe Constituição para dois homens, que deveriam se envergonhar do propósito aventureiro.
Oxalá o Supremo Tribunal Federal tenha na memória a responsabilidade dos "freios e contrapesos", para estancar o que será sua derrocada, caso aquiesça com esta verdadeira declaração de descompromisso com o texto constitucional. Dirá, assim, que existem normas constitucionais inconstitucionais, relembrando uma época que a humanidade jamais deve esquecer, mas que não precisa ser relembrada de modo a transformar em regra de etiqueta o que deve ser tratado como norma de valer.
Espera-se que Berlim esteja na lembrança apenas como garantia do moleiro de Sanci-souci, para que, parafraseando, possamos dizer: há juízes em Brasília que garantem a eficácia da Constituição da República.
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