Opinião

Tribunais desafiam 4ª Turma do STJ e asseguram tratamentos fora do rol da ANS

Autor

  • Luciano Correia Bueno Brandão

    é advogado com atuação exclusiva na área de Saúde. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra/Portugal (UC) e especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito (EPD). Membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP e da World Association for Medical Law (WAML).

23 de agosto de 2020, 15h30

Como se sabe, são inúmeras as ações judiciais movidas por pacientes em face de operadoras de planos de saúde visando garantir acesso a tratamentos, procedimentos, cirurgias, exames e medicamentos que corriqueiramente tem sua cobertura negada pelos convênios.

De um lado, as operadoras sustentam que devem cobrir apenas os procedimentos que constam expressamente do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde editado a cada dois anos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

De outro lado, dada a notória defasagem de atualização do Rol, que o torna rapidamente obsoleto diante dos diuturnos avanços da medicina, os pacientes se veem forçados a recorrer ao Judiciário como forma de assegurar acesso efetivo aos mais modernos e eficientes meios de tratamento.

Ao longo dos anos, reconhecendo as deficiências regulatórias e a defasagem de incorporação de novas tecnologias, a jurisprudência nacional se consolidou no sentido de reconhecer a natureza meramente exemplificativa do rol da ANS.

Vale dizer que os Tribunais em todo o país e o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ), passaram a reconhecer o rol da ANS como lista que contempla as coberturas mínimas obrigatórias, mas que não exclui de cobertura outros procedimentos ou tratamentos prescritos a critério médico, ainda que não previstos expressamente no rol.

Recentemente, no entanto, a 4ª Turma do STJ deflagrou verdadeira cisma interna acerca do tema, ensejando discussão sobre suposta mudança de posição da Corte, o que não é verdade, como a seguir se verá.

Para contextualizar, é importante esclarecer que a 2ª Seção do STJ é composta por duas Turmas (a 3ª e a 4ª Turma), as quais são responsáveis pelo julgamento das questões de direito privado, o que abrange especificamente os processos envolvendo saúde suplementar

Ao longo dos anos, ambas as Turmas sempre adotaram posição pelo entendimento do rol da ANS como de natureza exemplificativa.

Ocorre que recentemente, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.733.013/PR, a 4ª Turma do STJ sinalizou mudança de entendimento de seus integrantes.

Naqueles autos, foi proferido acórdão, publicado no DJe em 20.02.2020 com a seguinte ementa:

Planos e seguros de saúde. Recurso Especial. Rol de procedimentos e eventos em saúde elaborado pela ANS. Atribuição da autarquia, por expressa disposição legal e necessidade de harmonização dos interesses das partes da relação contratual. Caracterização como relação exemplificativa. Impossibilidade. Mudança no entendimento do colegiado (overruling). CDC. Aplicação, sempre visando harmonizar os interesses das partes da relação contratual. Equilíbrio econômico-financeiro e atuarial e segurança jurídica. Preservação. Necessidade. Recusa de cobertura de procedimento não abrangido no rol editado pela autarquia ou por disposição contratual. Oferecimento de procedimento adequado, constate da relação estabelecida pela agência. Exercício regular de Direito. Reparação de danos morais. Inviabilidade”.

Com isso, basicamente a 4ª Turma do STJ se filiou ao entendimento de que as operadoras não estariam obrigadas à cobertura de tratamentos ou procedimentos não previstos no rol da ANS.

É importante salientar, no entanto, que a eventual alteração de posição dos ministros integrantes da 4ª Turma do STJ não representa alteração da posição do STJ como um todo, e sequer do Judiciário de maneira geral.

Ao contrário, após o julgamento do Recurso Especial nº 1.733.013/PR pela 4ª Turma, a 3ª Turma do STJ reiterou expressamente sua posição no sentido de que, em seu entender, o rol é, sim, exemplificativo, inclusive fazendo referência ao fato de que o julgado da 4ª Turma não influi no posicionamento adotado pela 3ª Turma.

Neste sentido, note-se que por ocasião do julgamento do Agravo Interno em Recurso Especial nº 1829583 SP 2019/0225660-2, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino salientou que “(…)nos termos da jurisprudência pacífica desta Turma, o rol de procedimentos mínimos da ANS é meramente exemplificativo, não obstando a que o médico assistente prescreva, fundamentadamente, procedimento ali não previsto, desde que seja necessário ao tratamento de doença coberta pelo plano de saúde. Aplicação do princípio da função social do contrato” e, mais do que isso, destacou expressamente que o precedente da 4ª Turma não vem sendo acompanhado por esta Turma (leia-se, a 3ª Turma), sendo oportuno, desde já, reafirmar a jurisprudência que prevalece neste colegiado”.

A posição firme adotada pela 3ª Turma no sentido de reiterar seu entendimento no sentido da natureza meramente exemplificativa do rol da ANS e da possibilidade de cobertura de procedimentos ali não previstos é importantíssima, pois faz contraponto à posição adotada pela 4ª Turma.

Na mesma esteira, os Tribunais Estaduais em recentíssimas decisões, vem reiterando a posição pelo entendimento no sentido de que o rol da ANS é meramente exemplificativo, confrontando a posição da 4ª Turma do STJ.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, à luz da Súmula 102, vem destacando expressamente em seus julgados que a decisão da 4ª Turma do C. STJ não é vinculante, bem como que o precedente trata de caso específico, com particularidades, onde havia alternativa de tratamento dentro do rol, não podendo, portanto, ser usado como paradigma para todos os casos.

Nesse sentido, por ocasião do julgamento do Recurso de Apelação nº 1017162-17.2019.8.26.0554, a Desembargadora Relatora Maria de Lourdes Lopez Gil, da 7ª Câmara de Direito Privado do TJSP assegurou a cobertura de tratamento não previsto no rol por entender que "(…)na hipótese dos autos, a exclusão da cobertura configuraria verdadeiro desvirtuamento do próprio objeto do contrato de plano de saúde, não se olvidando do seu caráter eminentemente protetivo em relação ao consumidor.Ao final, vale acrescentar que o recente julgamento proferido pela 4ª Turma do C. Superior Tribunal de Justiça, nos autos do REsp nº 1.733.013/PR não possui efeito vinculativo e se refere a hipótese em que foi oferecido tratamento alternativo.Portanto, a r. sentença recorrida não comporta reforma, devendo ser mantida por seus próprios e mais estes fundamentos."

Na mesma linha foi o Desembargador Relator Rui Cascaldi, da 1ª Câmara de Direito Privado do TJSP, que por ocasião do julgamento do Recurso de Apelação nº 1013526-17.2018.8.26.0477 observou que “(…) de fato, a Quarta Turma do C. STJ, no julgamento do REsp 1.733.013/PR, ocorrido em 10/12/2019, assinalou ser “inviável o entendimento de que o rol é meramente exemplificativo e de que a cobertura mínima, paradoxalmente, não tem limitações definidas”.Mas tal conclusão não conduz ao reconhecimento da taxatividade do rol de procedimentos da ANS, legitimando toda e qualquer recusa de cobertura. E, referido julgamento não se reveste de efeito vinculante, de observância compulsória.Ademais, trata o citado REsp de hipótese distinta do presente caso, pois, naquela, disponibilizou-se ao beneficiário tratamento previsto no rol da ANS, compatível e de reconhecida eficácia, sendo determinada a sua preferência em relação à prescrição médica, pois igualmente adequado às necessidades do paciente.Há que se ter em mente, também, que esta questão não se encontra pacificada na Corte Superior, havendo inúmeros julgados em sentido contrário da Terceira Turma, posteriores ao precedente citado, conforme bem ressaltou o Des. Claudio Godoy, quando do julgamento da Apelação Cível nº 1015118-25.2019.8.26.0554 (1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, j. em 11/05/2020), com remissão a várias decisões monocráticas dos Ministros componentes daquela Terceira Turma".

Também o E. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, firmou posição apontando que “(…) em que pese o precedente da 4Turma do Superior Tribunal de Justiça ter sinalizado uma mudança no entendimento (overruling) na jurisprudência da referida Corte, para entender que o rol de eventos e coberturas da ANS é taxativo, portanto, o plano de saúde não poderia ser obrigado a fornecer tratamentos não previstos, para o fim de manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, tem-se que tal julgado não possui efeito vinculante, por não ser sido proferido pelo rito dos recursos repetitivos, constituindo apenas novo posicionamento daquela Turma (TJ-MS – EMBDECCV: 14019522420208120000 MS 1401952-24.2020.8.12.0000, Relator: Des. Marcelo Câmara Rasslan, Data de Julgamento: 30/07/2020, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 07/08/2020)

Como se vê, os Tribunais Estaduais e a própria 3ª Turma do STJ vem contrariando firmemente a ideia de que o precedente pontual e específico firmado pela 4ª Turma do STJ por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.733.013/PR representaria uma mudança definitiva de posição acerca do entendimento da natureza meramente exemplificativa do rol da ANS.

Trata-se aquela decisão da 4ª Turma do STJ efetivamente de uma decisão pontual, específica, repleta de particularidades, sem efeito vinculante e que não pode ser utilizada como paradigma de forma generalizada.

A verdade é que a sólida jurisprudência nacional construída ao longo dos anos pelos Tribunais e pelo próprio Superior Tribunal de Justiça é no sentido de reconhecer a possibilidade de imposição de cobertura pelos planos de saúde de tratamentos e procedimentos ainda que não previstos expressamente no rol, sempre que houver indicação médica expressa.

Assim, o fato é que a narrativa propalada pelas operadoras de planos de saúde em certos meios no sentido de que o STJ mudou sua posição acerca do rol da ANS é uma falácia que não representar a ampla maioria das decisões judiciais (e do próprio STJ) acerca do tema.

No momento, a posição adotada pela 4ª Turma do STJ se mostra dissonante, isolada e, felizmente, vem sendo rechaçada pelo Judiciário como um todo. O direito à saúde agradece.

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  • é advogado com atuação exclusiva na área de Saúde. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra/Portugal (UC) e especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito (EPD). Membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP e da World Association for Medical Law (WAML).

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