Processo Familiar

A sucessão hereditária nas sociedades de advogados

Autor

  • Mário Luiz Delgado

    é advogado parecerista professor do programa de mestrado e doutorado da Fadisp presidente da Comissão de Direito de Família e das Sucessões do Iasp presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM doutor em Direito Civil pela USP e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP.

23 de agosto de 2020, 8h00

As Sociedades de Advogados são sociedades simples especiais ou sui generis.  No enquadramento codificado  configuram "sociedades simples puras", porém também encontram-se regidas por lei especial, no caso a Lei nº 8.906 (2), de 4 de julho de 1994 que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e que as proíbe de adotar quaisquer dos tipos de sociedade empresária e submete seus atos societários a registro perante a própria entidade de fiscalização profissional (OAB), jamais perante o RCPJ..

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Apesar da natureza jurídica de "sociedade simples", o regramento desse tipo societário, disciplinado nos artigos 997 a 1.038 do Código, somente se aplica supletivamente, cedendo espaço para o EAOAB, o Regulamento Geral, os Provimentos do CFOAB , sendo que as disposições do Código Civil atinentes à sociedade simples incidirão naquilo que as citadas normas não dispuserem.

Na ausência de previsão específica no EOAB, a sucessão hereditária do advogado sócio de Sociedade de Advogados segue o disposto o artigo 1.028 do CCB, que regula a transmissão das quotas sociais após o falecimento do seu titular[3].

Apesar de inserido topograficamente no capítulo das sociedades simples, trata-se de regra geral aplicável a todas as sociedades de pessoas, estabelecendo as diversas alternativas possíveis no trato das participações societárias à luz do direito sucessório.

A primeira alternativa, veiculada no caput do artigo 1.028, consiste na liquidação da quota. Não havendo previsão no ato constitutivo, a Sociedade de Advogados não se dissolve, nem se extingue, com a morte de qualquer um dos sócios, cujas quotas devem ser liquidadas para pagamento dos herdeiros, legítimos e testamentários, com redução ou não do capital social.  Com a abertura da sucessão, o sucessor não se torna sócio, mas apenas credor da sociedade pelo valor patrimonial das quotas sociais que lhe foram transmitidas por força do droit de saisine.

Deve o contrato social dispor sobre a forma de apuração dos haveres e o prazo de pagamento aos herdeiros do sócio falecido. A liberdade convencional, nesses casos, é assegurada pelos arts. 604, inciso II, e 606 do Código de Processo Civil de 2015 e abrange tanto o modo de pagamento, se em dinheiro ou em bens, móveis ou imóveis, quanto a data em que este deve ocorrer, com possibilidade de parcelamento. Não havendo previsão no contrato social sobre o procedimento de avaliação e as modalidades de pagamento, aplica-se o artigo 1.031 do CC, procedendo-se à determinação do valor das quotas por perícia com base na situação patrimonial da sociedade na data da abertura da sucessão (data da resolução da sociedade em relação ao sócio falecido — artigo 605, I do CPC) e pagamento em dinheiro, no prazo de 90 (noventa) dias. A liquidação da quota pode ser feita extrajudicialmente, se houver consenso entre os herdeiros e os sócios remanescentes, os quais poderão suprir o valor das quotas (§ 1º do artigo 1.031) ou promover a redução do capital, com o pagamento aos herdeiros ou depósito em conta do Espólio.

A segunda alternativa, diversa da liquidação da quota, contemplada no inciso I do artigo 1.028, depende de previsão específica no contrato social. Com efeito, o contrato pode prever, por exemplo, em caso da morte de um sócio, que o cônjuge, o companheiro, os herdeiros, ou determinado herdeiro, ingressarão na sociedade, mediante transmissão das quotas e alteração do contrato social, passando o sucessor a ocupar a posição do de cujus no quadro societário, desde que inscrito na OAB. Ou ainda que a sociedade continuará apenas com os sócios sobreviventes, ou mesmo com outros beneficiários habilitados, diversos dos herdeiros legítimos.

O contrato pode igualmente estipular que os sucessores inscritos na OAB somente ingressarão na sociedade com o consentimento dos demais sócios, ou que determinados herdeiros, ou classe de herdeiros, não serão admitidos na sociedade. A liberdade contratual dos sócios, para regular no ato constitutivo da sociedade, a sucessão de suas quotas, deve ser a mais ampla possível, só encontrando limites nas disposições de ordem pública e nos princípios gerais do direito, tais como o da vedação ao enriquecimento sem causa.

Na sucessão ab intestato, a opção do contrato não pode resultar em desigualação dos quinhões hereditários, o que depende de disposição testamentária, observados os limites da legítima. Se o valor das quotas, na data de abertura da sucessão, exceder os direitos sucessórios do herdeiro eleito no contrato para ingressar na sociedade, a diferença deve ser colacionada e o ingressante se torna devedor dos demais. Advirta-se, porém, que mesmo contendo o contrato social cláusula dispondo sobre a substituição do sócio falecido pelos herdeiros ou por determinado herdeiro, e não existindo ressalva quanto ao direito dos sócios remanescentes em aceitá-los ou não, essa previsão não os transforma, automaticamente, em sócios da pessoa jurídica.

Primeiro, porque a transmissão da qualidade de sócio pela via convencional fica condicionada à aceitação e à habilitação dos sucessores, que podem recusar a condição de sócio, já que ninguém pode ser compelido a associar-se (artigo 5º, inc. XX, da CF) ou não preencherem os requisitos legais para o ingresso na Sociedade de Advogados, especialmente a inscrição na OAB. Da mesma forma, os sócios remanescentes podem discordar da admissão de novos sócios e postular a própria retirada do quadro societário.

Uma terceira alternativa, contemplada no inciso III do artigo 1.028, fica condicionada à celebração, após a abertura da sucessão, de acordo entre os sócios remanescentes e os herdeiros, regulando-se a substituição do sócio falecido. Nesse caso, por implicar modificação do contrato social, a deliberação dos sócios remanescentes deve ser unânime (CC, art. 999).

A substituição do sócio falecido de que trata o inciso III do artigo 1.028 constitui fator obstativo da liquidação das respectivas quotas sociais e pode se dar pelos herdeiros ou por terceiros. Nada obsta que o acordo entre os herdeiros do de cujus e os sócios remanescentes preveja a transferência das quotas herdadas para um dos atuais sócios ou mesmo para terceiro que pretenda ingressar na sociedade. Quando a sociedade continua sem os herdeiros do sócio falecido, aqueles devem receber o equivalente patrimonial das quotas da sociedade outrora detidas pelo sócio falecido. No silêncio do contrato social sobre a substituição do sócio falecido, os sócios remanescentes também podem optar pela dissolução total, vale dizer, pela extinção da sociedade. É o que dispõe o inciso II do artigo 1.028. A dissolução é o fato jurídico que permite o início da liquidação a qual, por sua vez, constitui o processo que culminará com o término da existência da pessoa jurídica (extinção). A dissolução, por consenso dos sócios, se operará extrajudicialmente (ver artigo 1.033). Os sócios podem deliberar o que bem entenderem sobre a continuidade ou não da sociedade.

Em havendo a dissolução total, o pagamento dos herdeiros se fará após a liquidação, observados os procedimentos previstos nos artigos 1.102 a 1.112. Não se aplica, aqui, o disposto no artigo 1.031, restrito às situações de dissolução parcial. A opção pela dissolução total da sociedade, por consenso unânime dos sócios, não deve prevalecer se os herdeiros do sócio falecido desejarem e estiverem habilitados a ingressar na sociedade e continuar a atividade. Se qualquer dos sucessores discordar da dissolução consensuada pelos sócios sobreviventes, porque pretenderia continuar com a atividade advocatícia, poderá postular, judicialmente, a  preservação da sociedade, excluindo-se os demais sócios, com o pagamento dos respectivos haveres na forma do artigo 1.031, se outra previsão não trouxer o contrato social.

Em conclusão, o falecimento de um sócio não implica o automático ingresso dos herdeiros na sociedade, pois o que se transmite pela saisine não são as próprias cotas sociais, mas, sim, o direito patrimonial sobre elas.

É possível dispor no contrato social de Sociedade de Advogados sobre a transmissão automática das cotas sociais aos herdeiros do sócio falecido para continuarem a atividade advocatícia, desde que regularmente inscritos na OAB, hipótese em que todos eles serão admitidos como sócios, se assim o desejarem.

Prevendo o contrato social a continuidade das atividades pelos herdeiros habilitados, evita-se o maior risco da sucessão hereditária nesse tipo societário, que seria o exercício da pretensão de liquidação da quota pelos herdeiros não advogados.

Porém, não havendo previsão de ingresso dos herdeiros no quadro social, nenhuma solução, diversa da liquidação da quota, será possível sem a participação e o consenso dos sócios remanescentes. A substituição do sócio falecido pelos herdeiros habilitados somente se procederá se assim dispuser o contrato social ou se houver acordo entre os sucessores e os sócios remanescentes, conforme dispõe o artigo 1.028, III, do Código Civil. Assim, não prevendo o contrato a sucessão e não tendo os sócios restantes concordado com esta, não há como permitir aos herdeiros, mesmo inscritos na OAB, a participação na Sociedade de Advogados.


[3] Art. 1.028. No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo: I – se o contrato dispuser diferentemente; II – se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade; III – se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido.

Autores

  • é advogado. Diretor de Assuntos Legislativos do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Doutor em Direito (USP). Professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).

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