Opinião

A cobrança de ISS e a interpretação do STF sobre os serviços tributáveis

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19 de agosto de 2020, 20h16

No final do mês de junho, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em sessão virtual, que as prefeituras não precisam ficar restritas aos itens elencados na Lei Complementar (LC) nº 116/2003 para cobrar o Imposto Sobre Serviços (ISS). O papel da LC nº 116 é justamente delimitar os serviços sujeitos à incidência do imposto, e isso é feito por meio de uma listagem de serviços tributáveis.  

Com isso, a segurança encontra a legalidade e os Fiscos municipais e os prestadores de serviços (contribuintes do ISS) podem atuar com razoável grau de previsibilidade e expectativas legítimas uns em relação aos outros. Pelo menos essa seria a melhor das intenções. Mas a verdade que a prática tributária impõe é outra.  

A listagem dos serviços tributáveis é matéria tradicionalmente controversa no meio jurídico. As várias posições a respeito podem ser agrupadas, para fins didáticos, entre dois polos: a listagem seria meramente exemplificativa ou taxativa. 

Se for exemplificativa, o poder dos municípios de tributar seria exercido com poucos (ou quase nenhum) limites. Se for taxativa, a listagem conduziria a uma prevalência de formalidades, de modo que o fato de haver efetivamente uma prestação de serviço perderia a relevância, e daria lugar à simples conferência burocrática: "está ou não está listado?". 

O Superior Tribunal de Justiça, que tem a última palavra sobre a interpretação da legislação federal, já há algum tempo vinha decidindo que "a interpretação extensiva é admitida pela jurisprudência quando a lei complementar preconiza a hipótese de incidência do ISS sobre serviços congêneres, correlatos, àqueles expressamente previstos na lista anexa (…)". (Recurso Especial (REsp) 1183210/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 1ª T., DJe 20/2/2013). 

Agora, o STF fixou a seguinte tese, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 784.439: "É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o artigo 156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva". Tal decisão foi tomada em sede de repercussão geral, obrigando a aplicação de tal entendimento por todas as instâncias do Poder Judiciário. 

Pode-se dizer que a tese fixada deixou um meio termo, visto que não afirmou a exaustividade da lista, mas entendeu que serviços distintos daqueles listados não podem ser tributados. Logo, percebe-se que há a possibilidade de discussão sobre tal especificidade. Agora, então, com o respaldado pela Suprema Corte, os fiscos municipais estão, de certa maneira, autorizados a aplicar uma interpretação extensiva à lista de serviços tributáveis. 

No contexto atual de crise econômica em decorrência da crise sanitária, é razoável supor que os municípios tendem a buscar incrementar suas fontes de receitas, o que, por sua vez, pode pressionar a cobrança de ISS sobre serviços de natureza similar àqueles listados no anexo da LC nº 116/2003. 

No STF, houve discordância no julgamento do caso. O ministro Gilmar Mendes abriu divergência trazendo uma diferente proposta de tese de repercussão geral, tratando especificamente da "interpretação extensiva" citada na tese proposta pela ministra relatora. Segundo o ministro, uma tese ampla poderia abrir "perigosa válvula de escape". Isso levaria, ainda segundo Gilmar Mendes, a uma "gritante insegurança jurídica", visto que os entes municipais teriam a liberdade de interpretar determinada atividade como extensivamente inserida no rol taxativo de serviços e, consequentemente, tributada por ISS. 

Houve, ainda, uma segunda divergência aberta pelo ministro Marco Aurélio Mello, mais restritiva, entendendo que o previsto na lei complementar que regula a matéria não admite interpretação extensiva e que o rol de serviços é taxativo. 

Prevaleceu a tese fixada por parte da relatora do caso, a ministra Rosa Weber, contribuindo para a geração de mais controvérsias, justamente por tentar agregar, na mesma fórmula, os dois polos antagônicos vistos anteriormente: "É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS" x "Incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva".

Delimitar o que seriam "atividades inerentes aos serviços elencados em lei" é algo que potencialmente gerará mais contencioso, administrativo e judiciário. E, no limite, pode-se questionar inclusive se isso não levaria a distorções sobre o que se entende da própria matéria tributável pelo ISS. 

Esse tipo de conflito entre os contribuintes e os fiscos municipais, em torno da abrangência da tributação sobre serviços, não é novidade. Tratando somente do regime de repercussão geral no STF, pelo qual se fixa um entendimento da Constituição que vincula os demais julgadores, têm-se em relação à tributação da prestação de serviços: 

— Tema 125: incidência do ISS sobre operações de arrendamento mercantil (leasing). Recurso Extraordinário nº 592.905/SC, julgado em dezembro de 2009;

— Tema 581: incidência do ISS sobre atividades desenvolvidas por operadoras de planos de saúde. Recurso Extraordinário nº 651.703/PR, julgado em setembro de 2016;

— Tema 300: incidência do ISS sobre os contratos de franquia. Recurso Extraordinário nº 603.136/RJ, julgado em meio de 2020. 

Esses são apenas alguns exemplos paradigmáticos: seja leasing, planos de saúde ou contratos de franquia, a jurisprudência recente — e cada vez mais próxima — do STF vem indicando um entendimento plural acerca da tributação sobre a prestação de serviços pelo ISS.  

E isso para dizer o mínimo, pois, no limite, pode-se estar diante de uma discussão sobre o próprio alcance do referido imposto. 

Talvez o ápice desta "pluralidade" seja a tendência cada vez mais necessária de análise individual do caso concreto, a fim de observar quais atividades são similares àquelas listadas na lista anexa à LC nº 116/2003, o que poderá ensejar interpretações divergentes. 

Não é que tal necessidade vá gerar comprometimento da segurança jurídica. Quando esse tipo de manobra interpretativa — difusa e casuística — é necessária, a segurança jurídica já está comprometida.

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