Opinião

O papel do presidente da Corte Suprema no impeachment

Autor

  • Aroldo Nascimento

    é juiz de Direito na Bahia ex-professor de Direito Eleitoral com especialização em Direito Público Processual e Eleitoral e mestrando em Ciências Jurídico-Políticas na Universidade Portucalense no Porto em Portugal.

19 de agosto de 2020, 15h16

1) Objetivo
Muitas dúvidas foram levantadas durante o último episódio de impeachment no país. Como o presente tema parece estar sempre ressurgindo em nossa realidade, é relevante que nos debrucemos sobre algumas questões em torno do assunto.

É de se destacar, de logo, que acolhemos a tese que o impeachment se trata de um processo de natureza eminentemente política. E, no mais, assumimos a posição que a participação do presidente da Corte Maior no procedimento não transforma a sua natureza, permanecendo predominantemente político.

Dito isso, quer-se demonstrar que a presença do ministro presidente do STF no papel de presidente do procedimento perante o Senado, não significa, em nenhuma hipótese, que estamos diante de um evento eminentemente jurídico, como demasiadamente sustentado por muitos.

Para tal, trazemos argumentos hábeis a superar o mero "achismo".

Já experimentados na seara do impeachment, importa que nós melhor descortinemos este instituto, identificando os seus contornos.

Nada obstante, para o desenvolvimento deste artigo, precisamos retroceder aos Estados Unidos recém-independentes.

2) Os artigos federalistas
Durante as discussões para a ratificação da Constituição norte-americana foram produzidos, a partir da pena de Alexander Hamilton e outros, os denominados Federalist Papers, documento relevante para a ciência política.

Encontramos neste uma defesa aguerrida a favor do Senado como órgão julgador do impeachment, e, inclusive, do presidente da República.

"Onde mais que não o Senado para ser um tribunal suficientemente digno, ou suficientemente independente? Que outro órgão seria provável que se sentisse TÃO CONFIANTE EM SUA PRÓPRIA SITUAÇÃO, para preservar, sem sentir-se intimidado ou influenciado, a necessária imparcialidade entre um CIDADÃO acusado e os REPRESENTANTES DO POVO" (tradução do autor) [1].

Importado da Inglaterra e já de uso em suas colônias, o impeachment passou a atingir, de forma inovadora, a atos abusivos do presidente da jovem nação.

Demais disto, quanto à sua competência, Hamilton explicitara o seguinte:

"O objeto de sua jurisdição são as ofensas procedentes da má conduta de homens públicos ou, em outras palavras, do abuso ou violação da confiança pública. Eles são de uma natureza que, de forma peculiar, pode ser denominada de POLÍTICA, vez que relacionadas principalmente a injúrias praticadas diretamente contra a própria sociedade" (tradução do autor) [2].

Dessa forma, restou confirmado no Texto Maior o Senado como o julgador final do processo de impeachment.

Ademais, restou também consignado que, na hipótese de julgamento de impeachment de presidente da República, o presidente da Corte Suprema, o Chief Justice, assumiria a presidência do procedimento. Mas, daí, pergunta-se: "Por quê?". E para tentarmos responder à presente questão, devemos aprofundar a nossa investigação.

3) Os artigos federalistas e o papel do Chief Justice
Da mera leitura dos artigos federalistas não se consegue extrair maiores informações sobre a atuação do presidente da Corte Suprema perante o impeachment.

Em artigo publicado na versão digital da revista Fortune, pela pena de Jeff J. Roberts, na véspera do procedimento instalado em face do presidente norte-americano Donald Trump, podemos observar uma resposta plausível para a questão aqui trazida. Após a arguição se a visão conservadora do Chief Justice poderia moldar o resultado do impeachment, vejamos a resposta trazida.

"Provavelmente, não. O Professor de Direito Michael Gerhardt explica que o papel do Chief Justice é 'presidir'  um dever amplamente simbólico. Distintamente da Suprema corte, onde seu poder é imenso, Roberts, no mais das vezes, será um espectador daquilo que é mais um processo político do que jurídico. Mesmo quando se tratar de regras de julgamento, o Senado poderá sempre anulá-lo" [3].

Assim, já conseguimos extrair, a partir da percepção do constitucionalista Michael Gerhardt, que o papel do Chief Justice é preponderantemente de mero espectador. Ademais, afirma que o processo de impeachment é mais político do que jurídico. E, para encerrar, informa que os senadores podem anular quaisquer regras estabelecidas.

Logo após, o mesmo autor declina o seguinte:

"Embora ele vá vestir a mesma toga que utiliza na Suprema Corte, seu papel principal será figurativo e trazer seriedade ao procedimento" (tradução do autor) [4].

Dessa forma, aduz o professor que a figura do Chief Justice é quase decorativa, trazendo, contudo, maior dignidade ao procedimento.

Muito interessante também é o artigo publicado no site ScotusBlog Supreme Court of the United States Blog, denominado "The role of the Chief Justice in an impeachment Trial". Neste periódico digital, pode-se extrair passagens extremamente relevantes para a nossa pesquisa.

Por sua relevantíssima importância, faz-se necessário, mais uma vez, trazer trecho integral do parágrafo que segue:

"É crucial observar a razão pela qual o presidente da Suprema corte surge apenas nos procedimentos presidenciais de impeachment. A resposta simples tem a ver com o frequentemente esquecido poder constitucional do Vice presidente em funcionar como presidente no sentido de presidente do Senado. Em todos os demais casos de impeachment o Vice-presidente pode presidir, tal como fez Thomas Jefferson no primeiro caso de impeachment, do Senador William Blount em 1799, tal como Aaron Burr depois o fez em 1805 no julgamento do Juiz Samuel Chase. Nada obstante, os autores da Constituição reconheceram que seria de todo inadequado para a pessoa que assumiria a presidência no evento de uma condenação pelo Senado do julgamento do presidente da República. Para prevenir tal óbvio conflito de interesses, eles especificaram o presidente da corte Suprema como um presidente permanente nos processos de impeachment dos presidentes da República" (tradução do autor) [5].

Dessa forma, e de forma cristalina, o artigo evidencia que, visando tão somente a evitar conflito de interesses, o presidente da Supreme Court ocupa a posição de presidir o impeachment perante o Senado. Ou melhor: tendo-se em vista que o vice-presidente é quem possui a condição de presidir todos os procedimentos de impeachment de todas as demais autoridades, não parecia razoável que o mesmo mantivesse tal posição quando do impeachment da autoridade ocupante do cargo de presidente da República, vez que teria o óbvio interesse no resultado do procedimento.

Assim, já parece fácil perceber que o único motivo pelo qual o Chief Justice ocupa tal posição naquele país decorre da impossibilidade lógica da manutenção do vice-presidente em exercer tal papel. Nada mais.

"Muitas discussões dos próximos procedimentos tem compreensivelmente, apesar de incorretamente, inferido duas coisas da presença de um juiz na posição de presidente: primeiro, que haver um juiz presidindo o procedimento implicaria que o processo seria semelhante a um processo judicial convencional, e, segundo, que o papel do presidente da corte Suprema seria semelhante ao de um Juiz em tal julgamento. Nenhuma das duas conclusões é apoiada pelo Texto Constitucional" (tradução e grifo do autor) [6].

Mais ainda.

"O presidente da corte Suprema está inserido em impeachments presidenciais tão somente para resolver o conflito de interesses. Sua presença na função não faz o procedimento mais judicial em seu caráter, nem é ele considerado maior autoridade judicial do que o Vice-presidente ou presidente Pro Tempore (presidente interino) do Senado em casos envolvendo outros oficiais" (tradução do autor).

E, nesse último ponto, importa destacar que não há absolutamente nada que difira a função do vice-presidente do papel do presidente no procedimento. Demais disso, toda e qualquer decisão tomada pelo presidente pode ser anulada pelo Senado, deixando à toda prova a pouca força da função.

Importa destacar que, entre as três hipóteses de impeachment nos EUA, tem-se que, na primeira oportunidade, tendo como processado o presidente Andrew Johnson, o Chief Justice Salmon Chase fora considerado o mais atuante. Nada obstante, a partir da leitura da obra "History of the impeachment of Andrew Johnson, President of the United States", publicada pela primeira vez em 1868, ou seja, no mesmo ano do procedimento, fácil perceber que a atuação do presidente fora igualmente limitada, e subordinada sempre à palavra final do corpo do Senado.

"Sr. Stanbery objetou e o presidente da corte Suprema disciplinou que seria competente para o testemunho e haveria a oitiva, salvo se o Senado entendesse de forma diversa" (tradução do autor) [7].

Na mesma linha, o festejado Cass R. Sunstein declina que "the role of the presiding judge is quite limited”, e, logo após, aduz que “In the two presidential impeachment proceedings in America History, the chief justice was a pretty minor player".

Por fim, citemos passagem do livro de Michael J. Gerhardt:

"Os autores da Constituição fizeram tal arranjo com a finalidade de garantir que o vice-presidente não assumisse o posto, face inequívoco conflito de interesse em controlar o julgamento daquele que estaria entre o mesmo e a Presidência da República" (tradução do autor)  [8].

Assim, parecendo já restar suficientemente delineada a função do Chief Justice perante a nação norte-americana, berço do presidencialismo, e, consequentemente, do impedimento do presidente da República, podemos passar a analisar a sua incorporação ao direito pátrio.

4) A incorporação ao Direito Pátrio
Fortemente influenciada pela Carta Americana de 1791, a Carta Republicana de 1891 trouxe de uma só vez a forma republicana de governo, transformou o país numa federação, além de introduzir o presidencialismo. E como uma das formas de correção deste último, adotou o instituto do impeachment, em seu artigo 33, §2º.

Ademais, excluindo-se a Carta de 1937, todas as demais Cartas Constitucionais atribuíram ao presidente da Corte Maior a presidência do procedimento de impeachment, fazendo parte, pois, da história legislativa de nosso país.

5) Conclusão
Feitas, pois, essas digressões, já é possível entrever o adequado papel reservado ao presidente da Corte Suprema no processo de impeachment do presidente da República.

Como já dito, o surgimento nos EUA decorreu de uma necessidade de ordem prática, qual seja, a impossibilidade do vice-presidente exercer tal função face o manifesto conflito de interesses.

Lado outro, parece adequado afirmar que a presença do presidente da Corte Suprema garanta um mínimo de seriedade ao ato, não ficando subordinado à vontade única da classe política. Isso seria demasiadamente perigoso, pois se correria o sério risco de subverter-se todo o procedimento. Afinal, há um rito a ser seguido e é preciso assegurar as garantias do investigado.

No mais, excluindo questões meramente laterais, a questão de fundo continua a repousar unicamente na vontade de um órgão político por excelência, o Senado. E a presença de um ministro do Supremo é incapaz de alterar tal realidade.

Nesse ponto é de se lembrar que não se admite o recurso da questão meritória a nenhum órgão, seja administrativo ou judicial. Aqui o Judiciário não tem legitimidade para tal.

Assim, a par do sério e sempre presente debate da natureza do procedimento do impeachment, não parece minimamente correto fundamentar uma eventual natureza eminentemente jurídica pela mera presença do presidente da Corte Suprema na direção dos trabalhos perante o Senado. Ficam, assim, a questões jurídicas basicamente restritas a questões de ordem formal, nunca de fundo. Crer-se diferente, parece, smj, um grave equívoco.

 


[1] No original: Where else than in the Senate could have been found a tribunal sufficiently dignified, or sufficiently independente?What other body would be likely to feel CONFIDENT ENOUGH IN ITS OWN SITUATION, to preserve, unawed and uninfluenced, the necessary impartiality between a INDIVIDUAL accused, and the REPRESENTATIVES OF THE PEOPLE., (Alexander Hamilton, 2011), The Floating Press Ed.

[2] No original: The subjects of its jurisdiction are those offenses which proceed from the misconduct of public men, or, in other words, from the abuse or violation of some public trust. They are of a nature which may with peculiar propriety be denominated POLITICAL, as they relate chiefly to injuries done immediately to the society itself. (Alexander Hamilton, 2011).

[3] No original: "Will Roberts' conservative views shape the outcome of the trial?

Probably not. As law professor Michael Gerhardt explains, the Chief Justice's role is to "preside"—a largely symbolic duty. Unlike at the Supreme Court, where his power is immense, Roberts will mostly be an onlooker over what is a political process more than a legal one. Even when it comes to the rules of the trial, the senators will be able to overrule him". https://fortune.com/2020/01/21/the-chief-justice-and-impeachment-john-roberts-role-in-the-trump-trial/ (Roberts, 2020).

[4] Although he will be wearing the same robes he does at the Supreme Court, his main role is to act as a figurehead and bring gravitas to the proceedings . (Roberts, Fortune.com, 2020)

[5] It is crucial to note why the chief justice appears only in presidential impeachment proceedings. The simple answer has to do with the often-forgotten constitutional power of the vice president to serve as president – meaning presiding officer — of the Senate. In any impeachment case other than that of the president, the vice president can preside, as Thomas Jefferson did in the very first impeachment, that of Senator William Blount in 1799, and as Aaron Burr later did in the 1805 trial of Justice Samuel Chase. However, the Framers recognized that it would be unseemly at best for the person who would assume the presidency in the event of conviction by the Senate to preside over the president’s trial. To prevent that obvious conflict of interest, they specified the chief justice as a stand-in presiding officer in presidential impeachment trials. (Bowman, 2020).

[6] A good many discussions of the upcoming Senate proceeding have understandably, but incorrectly, inferred two things from the presence of a judge in the presiding officer’s seat: first, that having a judge preside implies that the process will be akin to a conventional judicial trial, and second, that the chief justice’s role will be akin to that of a judge in such a trial. Neither inference is supported by the constitutional text. (Bowman, 2020).

[7] Mr. Stanbery objected, and the Chief Justice ruled that the testemony was competente and would be heard “unless the Senate think otherwise”. (Ross, 2013).

[8] The framers provided for this arrangement in order to assure that the presiding officer would not be the vice-president, who clearly would have a conflict of interest in oversseing the trial of the one person standing between him and the presidency. (Gerhardt, 2018).

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