Opinião

5ª e 6ª Turmas do STJ em desarmonia jurisprudencial por pacote 'anticrime'

Autor

  • Stephan Gomes Mendonça

    é advogado criminalista sócio do escritório Zattar e Mendonça Advogados pós-graduado em Processo Penal pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais em convênio com o Instituto de Direito Penal Económico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas-SP.

16 de agosto de 2020, 11h10

A Lei Federal nº 13.964/2019, também conhecida como pacote "anticrime", alterou uma série de dispositivos do Código Penal, do Código de Processo Penal e da legislação extravagante, tais como Lei de Execução Penal, Lei de Lavagem de Dinheiro, Estatuto do Desarmamento e Lei de Drogas.

A modificação da legislação penal e processual penal vem na esteira de pretendido endurecimento no combate à criminalidade e para atualizar e aperfeiçoar o ordenamento jurídico brasileiro. Entre as alterações de maior relevo pode-se destacar o aumento da pena máxima de prisão de 30 para 40 anos, a criação do juiz de garantias, novas regras para cumprimento da pena em regime fechado e melhor regulamentação da colaboração premiada.

Uma importante modificação ocorreu com relação ao crime de estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal, no que se refere ao processamento das investigações e da ação penal em face do autor dos fatos.

O estelionato é um dos crimes cuja definição é melhor conhecida pela população em geral, tanto que o número do artigo que o define no Código Penal virou sinônimo do indivíduo malandro, aproveitador, enganador. Via de regra, esse delito engloba as condutas criminosas que visam a ludibriar alguém para obter uma vantagem indevida. São exemplos toda sorte de "golpes" e fraudes e o próprio Código Penal exemplifica algumas condutas incriminadas, tais como: I) vender, permutar, dar em pagamento, em locação, ou em garantia coisa alheia como própria; II) alienar coisa própria inalienável, gravada por ônus ou litigiosa; III) defraudação de penhor; IV) fraude na entrega de coisa; V) fraude para recebimento de indenização de valor de seguro; e VI) fraude no pagamento por meio de cheque. De tempos para cá, as fraudes alcançaram a internet e também redes sociais como o WhatsApp.

Como se vê, o estelionato é um tipo penal que alcança um grande número de condutas criminosas e, por essa e outras razões, é um crime que tem grande recorrência. É difícil conhecer alguém que nunca passou pelo dissabor de cair em algum golpe.

Pois bem. Até a entrada em vigor da Lei Federal nº 13.964/2019, o crime de estelionato se procedia mediante ação penal pública incondicionada e, com as alterações promovidas, passou a ser crime que se procede mediante ação penal pública condicionada à representação, salvo se a vítima for: I) a Administração Pública, direta ou indireta; II) criança ou adolescente; III) pessoa com deficiência mental; ou IV) maior de 70 anos de idade ou incapaz.

Isso quer dizer, de forma simples, que antes bastava chegar ao conhecimento da autoridade policial (delegado de polícia) o acontecimento de um crime de estelionato, por intermédio da lavratura de um boletim de ocorrência, por exemplo, que já se poderia dar início às investigações relacionadas ao delito e ao(s) seu(s) autor(es) e, após conclusão do inquérito policial, estaria autorizado o representante do Ministério Público (promotor de Justiça) a processar criminalmente o autor do crime (artigo 100, §1º, do Código Penal).

Entretanto, desde a edição do pacote "anticrime", não basta a mera comunicação do crime à autoridade policial. A lei penal passou a exigir a representação, que consiste na expressa manifestação de vontade da vítima no sentido de autorizar o desencadeamento da persecução penal.

O instituto não é novo. Diversos crimes da legislação brasileira são condicionados à representação do ofendido, tais como ameaça, lesão corporal leve, lesão corporal culposa e injúria discriminatória. A razão por detrás dessa configuração, segundo a doutrina, levaria em conta que os crimes submetidos a esse regime afetariam mais o interesse privado do que o público.

Seja como for, é um obstáculo processual a ser superado para que a apuração dos fatos criminosos seja levada a cabo pelas autoridades competentes. Esse cenário se agrava tendo em vista que a lei prevê nos artigos 103 do Código Penal e 39 do Código de Processo Penal que o ofendido tem seis meses, contados a partir do dia em que veio a saber quem é o autor dos fatos, para exercer seu direito de representação.

Caso a vítima não venha a representar no prazo estabelecido, operar-se-á a decadência do direito de representação, que impõe a extinção da punibilidade do investigado (artigos 103 e 107, inciso IV, do Código Penal). Em outras palavras, se a vítima não representar em face do investigado no prazo de seis meses contados a partir do conhecimento do autor do crime, ele não poderá ser investigado, processado ou criminalmente responsabilizado pelos fatos criminosos.

Dúvida interessante é como ficarão os procedimentos em andamento que apurem crime de estelionato. Ao responder essa pergunta, a doutrina se dividiu em dois grupos: I) diante da omissão da nova lei, deveria ser aplicado, por analogia, o artigo 91 da Lei Federal nº 9.099/95, que estabelece a intimação do ofendido ou do seu representante legal para oferecer representação no prazo de 30 dias, sob pena de decadência; e II) a alteração legislativa não atinge o ato jurídico perfeito (recebimento da denúncia), mas pode ser aplicada à fase pré-processual.

A questão já chegou ao Superior Tribunal de Justiça por intermédio de Habeas Corpus impetrados pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, tendo sido cada writ distribuído a uma das turmas criminais do STJ. As decisões revelam quadro de desarmonia entre as turmas: cada uma seguiu um dos caminhos mencionados acima.

No Habeas Corpus 573.093, a 5ª Turma decidiu, à unanimidade, que a alteração legislativa não atinge o ato jurídico perfeito, de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo [1].

Em outras palavras, a 5ª Turma assentou que nas ações penais em curso não é necessária intimação da vítima para que manifeste o desejo de representar em face do acusado. De outro lado, nas investigações criminais, de acordo com esse entendimento, será necessário que o ofendido tenha representado em face do autor dos fatos dentro do prazo de seis meses a partir da entrada em vigência da lei, isto é, até o dia 23 de julho de 2020, para que a persecução penal possa validamente prosseguir.

Já a 6ª Turma, nos autos do Habeas Corpus 583.837, decidiu, também à unanimidade, que a retroatividade do §5º do artigo 171 do Código Penal, por ser norma mais benéfica ao réu, aplica-se a todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, não fazendo qualquer distinção entre as fases investigatória e processual [2]. Dessa forma, concedeu parcialmente a ordem pleiteada para determinar que a vítima seja intimada para manifestar interesse na continuação da persecução penal em 30 dias, sob pena de decadência, em aplicação analógica do artigo 91 da Lei Federal nº 9.099/1995.

Mais que isso, entendeu a 6ª Turma que "considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais (ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica), visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão".

A divergência entre as turmas, embora fomente a discussão acadêmica e sinalize a independência dos julgadores que compõem o tribunal, inevitavelmente causa insegurança jurídica e mantém em aberto a resolução da questão trazida pelo pacote "anticrime". O assunto seguramente será discutido mais vezes nas cortes superiores e chegará ao Supremo Tribunal Federal, que deverá pacificar o tema.

Seja como for, a mudança legislativa pode ser vista como positiva à medida que confere à vítima maior autonomia e possibilidade de participação no inquérito policial, mas é inegável que a exigência da representação dificultará a investigação do crime de estelionato, por exigir manifestação de vontade do ofendido, limitada temporalmente, para iniciar as investigações/permitir o oferecimento de ação penal em face do autor dos fatos. Será necessário aguardar posicionamento mais consistente dos tribunais superiores no que atine à retroatividade do artigo 171, §5º, CP, aos procedimentos em andamento ao tempo da promulgação da lei.

 


[1] STJ. HC 573.093. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Quinta Turma.DJE 18/06/2020.

[2] STJ. HC 583.837. Min. Sebastião Reis Júnior. Sexta Turma.DJE 04/08/2020.

Autores

  • é advogado criminalista, sócio do escritório Zattar e Mendonça Advogados, pós-graduado em Processo Penal pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em convênio com o Instituto de Direito Penal Económico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!