Opinião

Como e por que o mercado de consumo deve apostar na autorregulação

Autores

  • Ellen Gonçalves

    é advogada vice-presidente da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor da OAB e sócia-fundadora do PG Advogados especialista em Direito do Consumidor e Resolução de Conflitos e em Contencioso de Alta Complexidade mestre em Direito Político e Econômico LLM em Direito Empresarial com ênfase em Direito do Consumidor e autora de O Direito do Consumidor e os Juizados Especiais Cíveis (IOB Thomson 2006) e Uma Lei para Todos - A História dos 30 Anos do Código de Defesa do Consumidor (Atelier de Conteúdo 2020).

  • Douglas Ribeiro

    é especialista em Direito do Consumidor e Processos Cíveis Empresariais do escritório Pires & Gonçalves Advogados.

14 de agosto de 2020, 12h15

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) se aproxima de seus 30 anos e ainda pode ser considerado uma lei de vanguarda, apesar das diversas iniciativas legislativas para sua alteração. Tal percepção de modernidade deve-se, entre outros aspectos, ao seu caráter principiológico, que lhe permite amoldar-se a toda variedade de negócios, cabendo ao aplicador da lei fazer a interpretação mais adequada ao caso concreto.

Mas essa versatilidade do CDC também traz consigo algumas mazelas, que devem ser revistas, de modo que nem tudo são flores e há espaço para avanços.

É inegável que o diploma consumerista caiu no gosto da população, sendo invocado diariamente por consumidores para defesa de seus interesses, além de fortalecer a consciência coletiva acerca dos limites do que seja ou não lícito nas relações de consumo. Entretanto, a lei em questão também propiciou uma exacerbada judicialização, tendo os consumidores acelerado esse processo ainda na segunda metade da década de 1990, quando da criação da lei dos Juizados Especiais Cíveis.

Numa primeira perspectiva histórica, poderia até se considerar que o acesso à Justiça seja um direito fundamental e o que está posto acima seja apenas a democratização desse direito, sendo a judicialização apenas sua consequência natural. Embora faça sentido esse raciocínio em um primeiro momento, nos parece que o acesso à Justiça esteja mais relacionado à pacificação social, com menor custo possível, do que ao indigesto direito de ação, ou seja, resolutividade, eficiência, fortalecimento e concorrência sadia do mercado entram nessa equação constitucional.

O cenário fica mais alarmante à medida que se nota que a litigiosidade brasileira não está restrita às ações consumeristas distribuídas no Poder Judiciário, havendo ainda por parte do Estado uma forte atuação por meio dos mais de 900 Procons espalhados pelo Brasil, ocasionando interminável número de reclamações e de processos sancionatórios, com aplicações de elevadas multas e outras sanções administrativas em face dos fornecedores, sem que haja, em contrapartida, a esperada evolução na qualidade do consumo, na experiência do usuário e no incremento da competitividade.

A existência de independência política, jurídica e econômica dos Procons e a escassez de políticas públicas nacionais capazes de proporcionar homogeneidade no funcionamento dos atores que compõem o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) e a sinergia com os demais órgãos estatais, entre eles as agências reguladoras, alimentam as velhas e onerosas soluções baseadas no confronto e na penalização de fornecedores, o que é extremamente indesejado, pois, além de não proporcionar inovação no mercado, agravam a já conhecida insegurança jurídica, instaurando uma regulação desorientada das relações de consumo.

É preciso reduzir essa regulação às avessas do mercado de consumo, baseada no litígio e na fiscalização com finalidades punitivas, para apostar em mecanismos que estimulem e desenvolvam outras formas de solução de conflito e que proporcionem outras percepções do que efetivamente sejam o desenvolvimento e a proteção ao consumo lastreados num mercado sadio, fundado na concorrência e na sustentabilidade, bem como na redução das diversas formas de intervenção estatal.

O próprio CDC, por meio de seu artigo 107, permite que entidades civis de consumidores e as associações de fornecedores ou sindicatos de categoria econômica possam regular, por convenção escrita, relações de consumo que tenham por objeto estabelecer condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e às características de produtos e serviços, bem como à reclamação e à composição do conflito de consumo.

Em que pese a referida disposição de possuir algumas limitações quanto ao seu objeto e abrangência, não se pode deixar de descartar a sua capacidade de promover a autorregulação pelos atores que integram a relação de consumo, por meio de entidades de proteção e defesa do consumidor, bem como pelas associações de fornecedores.

É evidente que soluções consensuais possuem maior aderência e representatividade do que aquelas fundadas apenas em sistemas hierárquicos, que, no caso brasileiro, como abordado, nem sempre estão alinhadas com os objetivos nacionais previamente pactuados.

Nessa toada espera-se verdadeiramente maior articulação do poder público na formulação de políticas nacionais que possam ser seguidas e sopesadas de acordo com as visões, experiências e missões dos diversos setores da administração e que compõem as relações de consumo, na expectativa de que se reduzam os discursos dissonantes e que se passem a ouvir as demais vozes advindas das ruas — entre elas as associações e os sindicatos de categorias econômicas.

O setor privado, por sua vez, deve explorar melhor os mecanismos de pacificação social e autorregulamentação já existentes, a exemplo do já mencionado artigo 107 do CDC.

Dessa forma, é preciso que as ações institucionais deem efetividade à Política Nacional das Relações de Consumo prevista no artigo 4º do CDC, desenvolvendo as associações representativas, harmonizando as relações de consumo, educando para o consumo — com base em estudos de mercado — e legitimando os mecanismos de autorregulamentação, pois estes são alinhados aos princípios constitucionais que regem a ordem econômica que, além da proteção ao consumidor, dá igual importância à livre iniciativa, à competitividade e à concorrência, premissas de um mercado saudável e vigoroso.

Autores

  • é advogada, vice-presidente da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor da OAB, CEO e sócia-fundadora do PG Advogados. É especialista em Direito do Consumidor e referência em Resolução de Conflitos e em Contencioso de Alta Complexidade. Mestre em Direito Político e Econômico, LLM em Direito Empresarial. É autora de “O direito do consumidor e os juizados especiais cíveis" (IOB Thomson, 2006) e “Uma lei para todos — A história dos 30 anos do Código de Defesa do Consumidor" (Atelier de Conteúdo, 2020).

  • é especialista em Direito do Consumidor e Processos Cíveis Empresariais do escritório Pires & Gonçalves Advogados.

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