Opinião

O caso do desembargador Eduardo Siqueira e o sistema de Justiça penal

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13 de agosto de 2020, 20h15

No dia 18 de julho, tornou-se fato notório o triste episódio que exibiu a escandalizante arrogância deste senhor, recolocando Santos no mapa nacional pelos piores motivos, ao ser abordado pela Guarda Civil Metropolitana da cidade por estar andando sem máscara.

Entretanto, no último dia 5, segundo reportagem do portal G1, o desembargador foi novamente flagrado andando sem máscara. Ao ser questionado pelo site, deu outra infeliz resposta, dizendo "não dar bola para eles (guardas municipais)" por ser um "desprazer ver eles (sic) estragando, destruindo, poluindo a praia".

Fico com Pessoa: "Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem".

Já alertava a conhecida frase atribuída a Nelson Rodrigues sobre os perigos de toda unanimidade. Aqui, um esclarecimento inicial, acaso não percebam: não se trata de um ataque à magistratura. Ao invés, tenham como uma ode em defesa do Poder Judiciário, que deve se envergonhar daqueles que ousam manchar a toga.

Existem excelentes juízes, é verdade, que certamente se constrangeram pela postura de seu par, mas existem, também, os outros. Os que, de alguma forma, sentem-se membros de uma casta superior por estarem imbuídos de maneira efêmera do poder estatal.

Existem aqueles que se julgam acima da lei, assenhorando-se dela e esquecendo-se que apenas lá estão para servir à res publica. Eles existem: o país da carteirada conta com sua nobre colaboração e, mesmo que apenas cultivem isso em seu interior, em algum momento fatalmente transbordará, "pois a boca fala do que está cheio o coração".

Todavia, a repercussão dada ao caso denuncia a proximidade milimétrica do avanço em humanizar nosso Judiciário, expondo seus erros e, paradoxalmente, expor por igual a distância abissal no que tange à atuação jurisdicional no sistema de Justiça penal.

Basta ver. Um advogado que venha a público primar pelo fiel cumprimento da Constituição Federal e da lei, em homenagem ao Estado democrático de Direito, exercendo o sagrado direito de defesa, é tido frequentemente como "defensor de bandido" e garantidor da impunidade.

Já um Juiz, por mais errado que possa estar, será ovacionado pela mesma população que criticou a carteirada do desembargador. Sim, errado. Esta deve ser a palavra eleita. As palavras têm sentido. Como todos os homens, juiz também erra.

Erra quando prende fora das hipóteses legais admitidas, a exemplo, por fatos ocorridos há mais de ano, descartando a imprescindível contemporaneidade. Erra quando se alia a uma das partes, aconselhando-a indiscriminadamente, exercendo o papel de coordenador da acusação. Erra quando se pretende herói.

Se erra por excesso de virtude, a quem acredita, ora, Montesquieu bem diz que "até a virtude precisa de limites". Se erra por interesses ocultos, erra em dobro. Sobre o cabedal de erros possíveis, há fartos exemplos descritos no "Livro das Suspeições" do Grupo Prerrogativas, composto por ilustres figuras.

O mesmo rigor técnico-científico que nos levou a constatar publicamente que o desembargador estava errado, por desobedecer às normas sanitárias e descumprir a lei, deve ser o mesmo que nos constrange sobre quaisquer ilegalidades. Deve doer no âmago, incomodar na boca do estômago e envergonhar de querer esconder a face.

Erros não podem ser autorizados em nome de uma possibilidade de interpretação diversa. Melhor do que ninguém no país, Lênio Streck defende a importância do constrangimento epistemológico para se assegurar o rule of law.

As regras devem ser respeitadas não somente pelo respeito às regras, senão por uma questão de sobrevivência do próprio pacto social. É lembrar não haver outra saída que não o Estado democrático de Direito.

Aliás, tudo isso é fruto da própria cultura popular arraigada, que parece herdar das tradições monárquicas absolutistas o sentimento de que the king can do no wrong, que, no que se refere a conduta de certos magistrados, parece inquestionável.

No Brasil, prisões ilegais parecem não causar perplexidade. Se houver uma absolvição, aí certamente incorreu em erro o magistrado, presume-se. Alguém conseguiu cravar que Justiça, mesmo, é condenar alguém. Se houver provas e respeito aos direitos e garantias, melhor ainda! É o extra cheese.

Se acaso questionado ao homem-médio, naturalmente alheio ao Direito, quem é "mais importante" entre os atores judiciais, bem provável responderá: o juiz. Com frequência, esse sentir permanece durante a graduação, em que se desenvolve ouvindo, de maneira jocosa, que juízes pensam ser deuses e desembargadores têm certeza.

Agora empossados, alguns profissionais parecem levar ao cabo o brocardo em sua atuação diuturna, no melhor estilo: "no meu tribunal mando eu!", "se o senhor quiser, faça concurso para a magistratura!".

Mais perigoso é quando alguns advogados nisso permanecem acreditando e, de maneira inadvertida, carregam esse pensamento em sua atuação profissional, mesmo que inconscientemente, não se insurgindo contra arbítrios, perecendo, com isso, o direito do patrocinado.

Embora seja permitido aos populares alheios ao Direito, aos causídicos é imposto conhecer e acreditar de maneira visceral no que prega o artigo 133 da Constituição Federal e no que reza o artigo 6º do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil.

Mais do que nunca, em tempos de punitivismo desmesurado, é indispensável ter plena ciência da importância da profissão secular da advocacia para o aperfeiçoamento do sistema de Justiça e da inexistência de hierarquia entre os atuantes judiciais. Ao extremo, é preciso, logo ao acordar e antes de adormecer, fazer ecoar Sobral e ter coragem de realizar o enfrentamento, custe o que custar.

Enfim, para haver progresso, certo é que todo erro deve ser corrigido. Talvez peque pelo excesso de esperança. A aversão pública à conduta do desembargador parece alvissareira, na medida em que a sociedade, a passos de formiga, começa a questionar os seus deuses.

Nada obstante, a reincidência do desembargador revela uma realidade dura: os deuses modernos não se importam com os meros mortais. Memento mori.

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