Opinião

Desencarceramento em razão da Covid-19: direitos humanos ou seletividade?

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11 de agosto de 2020, 15h48

Encontra-se pendente de julgamento no Superior Tribunal de Justiça recurso em Habeas Corpus coletivo impetrado pela Defensoria Pública da União originalmente no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, que configurou umas das primeiras medidas adotadas pela Defensoria Regional de Direitos Humanos em São Paulo em relação aos efeitos nefastos causados pela pandemia da Covid-19 na população mais vulnerável, no caso específico, os efeitos que já se avizinhavam sobre a população carcerária do país.

No dia 17 de março deste ano, tão logo decretado o estado de calamidade pública no Estado, a Defensoria Pública da União adotou providência que poderia poupar inúmeras vidas, quer estivessem dentro da penitenciária ou fora dela. Em março, logo que começaram a ser implementadas as medidas de isolamento social, as razões expostas na petição inicial já demonstravam, de forma categórica, a ilegalidade da manutenção da prisão das pessoas que integram os grupos de riscos da Covid-19, justamente pelo grave risco à incolumidade física e à vida a que estão submetidas, enquanto permanecerem presas sob a custódia do Estado, o que foi reforçado pela Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça.

Estamos, contudo, diante de uma recomendação que, por sua própria natureza, é desprovida de coercitividade e, conforme dados e denúncia de diversas organizações [1], verifica-se que não obteve os efeitos práticos pretendidos.

Obviamente, deve-se pressupor que o problema trazido aqui, suas consequências e a consciência da necessidade da adoção de providências é compartilhado por todas as instituições republicanas. Não se veem, entretanto, medidas concretas de desencarceramento sendo adotadas, o que ocorreu em muitos outros países, seja em relação a presos provisórios e que tenham cometido crimes sem violência, seja em relação àqueles que já padecem de comorbidades que podem ter efeitos letais quando associadas à Covid-19.

Já passaram cinco meses desde o início das medidas de isolamento no país, mesmo tempo em que é processado o Habeas Corpus coletivo da DPU/SP. A resposta não pode mais tardar e deve seguir as melhores diretrizes internacionais das instâncias de direitos humanos, como recomendado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no dia 30 de março, em que conclama os Estados a garantir a saúde e a integridade das pessoas privadas de liberdade e de suas famílias diante da pandemia da Covid-19.

A situação carcerária no Brasil é de tal modo grave que o Supremo Tribunal Federal já declarou haver um verdadeiro estado de coisas inconstitucional, uma ofensa perene e sistêmica ao que dispõe a Constituição Federal. A reconhecida superlotação do sistema penitenciário brasileiro associada à falta de estrutura sanitária, em que apenas 37% das unidades possuem módulos de saúde, faz com que a taxa de mortalidade entre os detentos seja três vezes maior que na população em geral, em uma situação de normalidade. Em São Paulo, o cenário não é diferente: há falta de água e de itens de higiene pessoal em diversas unidades, conforme revelam extensos relatórios recebidos de organizações como a Frente Estadual pelo Desencarceramento do Estado de São Paulo (FED-SP), da Associação de Amigos e Familiares de Presos (Amparar) e do Movimento Mães do Cárcere.

Nesse sentido, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em 25 de março, instou os Estados a proceder com a devida urgência a reduzir o número de pessoas privadas de liberdade e a libertar indivíduos especialmente vulneráveis à Covid-19, em particular detentos idosos e aqueles afetados por doenças.

Diante da omissão do Executivo em coordenar tais medidas de desencarceramento, cabe ao Judiciário fazê-lo, para que se evite a contaminação de dezenas de milhares de pessoas, com um expressivo número de mortes. Alguns Habeas Corpus coletivos já foram rejeitados pelo STJ tendo por tema pedidos de liberdade ou de conversão em prisão domiciliar para pessoas em grupos de risco da Covid-19, a grande maioria deles apresentados pelas Defensorias Públicas, da União e dos Estados. Recentemente, medida semelhante impetrada pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos teve sua liminar indeferida pelo presidente do STJ, o mesmo que determinou a soltura de Fabrício Queiroz e a revogação da prisão de sua foragida esposa. Além deles, o Judiciário já concedeu prisão domiciliar para outros presos famosos: Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Paulo Vieira de Souza, Roger Abdelmassih, Dario Messer.

Conquanto pareçam acertadas todas essas decisões, protegendo a saúde e a vida dessas pessoas quando o Estado que as custodia presas não pode garanti-las, espanta o alto grau de seletividade, já que os presos pobres defendidos pela Defensoria Pública não recebem o mesmo tratamento humanizado por parte do Judiciário. O STJ tem nas mãos a possibilidade não só de salvar vidas, mas, com isso, fazer história. A decisão do STJ pode, de imediato, colaborar para reduzir o sofrimento além das capacidades humanas de presos, agentes, funcionários a serviço da Justiça e familiares, além de demonstrar com clareza que a Justiça criminal e o sistema carcerário brasileiro servem, de fato, a todos, e com isso dar um passo muito relevante na garantia dos direitos humanos, sem ignorar a negritude e a pobreza como fundamentos empíricos de milhares de prisões.

 


[1] "No entanto, a despeito de tantas manifestações de apoio e do reconhecimento até internacional de sua importância, tem sido sistemático o descumprimento das diretrizes estabelecidas pela Recomendação nº 62 pelo Poder Judiciário brasileiro. A começar pelo próprio Ministério da Justiça, que três dias após a publicação do documento, editou a Portaria Interministerial nº 5, que o contraria". Disponível em: <http://www.iddd.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Apelo-OEA-Final.pdf>. Acesso em 6/8/2020.

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