Opinião

A doutrina Brady e o dever de o MP revelar ao réu a existência de provas essenciais

Autores

  • Claudio Bidino

    é advogado Criminalista sócio do escritório Bidino & Tórtima Advogados mestre em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Oxford e mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra.

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  • Fernanda Tórtima

    é advogada criminal sócia de Tórtima Galvão e Maranhão e mestre em Direito pela Universidade de Frankfurt am Main.

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11 de agosto de 2020, 14h59

O presente artigo tem o objetivo de responder à seguinte indagação: o Ministério Público tem o dever constitucional de revelar para o réu a existência de provas à disposição do Estado que sejam essenciais à sua defesa?

Spacca
Até algum tempo atrás, a resposta a essa pergunta parecia despicienda porque, via de regra, todas as provas que guardavam relação com o objeto de uma determinada ação penal estavam encartadas nos autos do inquérito policial que acompanhavam a denúncia.

À defesa, inclusive, vinha sendo reconhecido o direito de acesso às provas mesmo durante a fase investigativa, por força do artigo 7º, XIV, do Estatuto da OAB e da Súmula Vinculante nº 14 do STF.

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Todo esse cenário mudou, entretanto, com uma série de recentes alterações na legislação, na jurisprudência e, notadamente, na práxis do sistema jurídico penal, que acabou por conferir maiores poderes ao Ministério Público e por permitir assim que a própria dinâmica processual viesse a ser reconfigurada, especialmente no âmbito dos chamados megaprocessos, que "se caracterizam pelo grande número dos réus e de acusações, pela extensa e complexa matéria probatória, bem como pela longa duração dos procedimentos"[1].

Em particular, no âmbito dos megaprocessos, algumas práticas que vêm sendo adotadas sistematicamente pelo Ministério Público, no curso da fase de investigação, assim como da ação penal, têm inviabilizado que os réus tomem conhecimento da íntegra do acervo probatório à disposição do Estado que guarde relação com os fatos criminosos que lhes estão sendo imputados nas respectivas denúncias.

Note-se, de início, que, usufruindo do poder de investigação que lhe foi assegurado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 593.727, o Ministério Público não raramente tem pulverizado as investigações de supostas organizações criminosas em diversos procedimentos investigativos. Cuida-se muitas vezes dos chamados Procedimentos Investigatórios Criminais (PIC)[2], também sendo possível encontrar investigações que correspondem a simples peças de informação[3], por vezes acompanhadas de medidas cautelares desmembradas de outros feitos.

Quer dizer, a partir de meros juízos unilaterais de conveniência investigativa e de estratégia processual acusatória, o Ministério Público tem deixado de conduzir as investigações criminais sobre fatos correlatos atribuídos a um mesmo grupo de pessoas no âmbito de um único procedimento investigativo ou mesmo de alguns poucos passíveis de serem identificados por parte do réu e do seu defensor, impedindo, assim, na prática, que eles tenham a exata dimensão das provas produzidas durante a fase apuratória.

Acrescente-se a isso que o Ministério Público, com alguma frequência, tem ainda deixado de incluir em uma mesma denúncia todos os fatos e personagens que, na sua ótica, participaram de uma mesma trama delitiva, seja porque não possui ainda elementos probatórios suficientes para tanto, seja porque reputa estrategicamente mais vantajoso o fatiamento da acusação em múltiplas denúncias, sendo certo que normalmente cada uma dessas denúncias vem acompanhada apenas de uma fração de prova, selecionada a bel prazer do órgão acusatório.

Destarte, em não poucas oportunidades, o réu se vê compelido a responder a uma ação penal sem poder tomar conhecimento das provas produzidas durante a investigação em toda sua integralidade. E o que é mais grave: muitas vezes o réu se defende em determinada ação penal ao mesmo tempo em que provas são produzidas contra ele em procedimentos investigativos correlatos; provas, essas, que, por vezes, acabam por ser usadas contra ele ao longo ou no final da ação penal em andamento.

Ademais, mesmo nas situações em que duas ou mais denúncias que versam sobre fatos e personagens que supostamente integram uma mesma dinâmica delitiva são oferecidas em uma mesma época, geralmente, não se vê efetivada a unidade de processos e de julgamentos estabelecida pelo artigo 79 do CPP. Isto porque, na prática, a separação facultativa de processos prevista pelo artigo 80 do CPP vem sendo aplicada indevidamente como uma regra, e não como uma exceção. Sendo assim, o réu, para além de ser impedido de conhecer a íntegra dos elementos probatórios produzidos durante a fase investigativa, acaba sendo inibido de acompanhar e de participar da produção de provas que possam vir a lhe interessar também em sede judicial.

Como se não bastasse tudo isso, a partir da promulgação da Lei nº 12.850/2013, o Ministério Público vem ainda celebrando cada vez mais acordos de colaboração premiada, em sede investigativa ou mesmo no curso de ações penais, muitos dos quais guardam pertinência com o objeto de ações penais em andamento e, mesmo assim, não chegam ao conhecimento dos réus, porque o seu sigilo ainda não foi levantado ou mesmo porque o órgão ministerial, a seu exclusivo critério, não vislumbrou necessidade de trazer aos autos esses acordos para alicerçar a tese acusatória.

Não é difícil perceber que essa assimetria de acesso à prova gera, como bem salientado por Diogo Malan, uma “desigualdade substancial entre as partes, pois enquanto o acusador possui visão global do contexto fático-probatório no qual está inserida a imputação, o defensor técnico do acusado pode conhecer somente uma fração desse contexto, comprometendo a sua compreensão[4].

A rigor, mais do que isso, essa relação processual assimétrica entre a acusação e a defesa abre espaço para potenciais violações a importantes garantias constitucionais, tais como a ampla defesa, o contraditório, o devido processo legal e sobretudo a paridade de armas, na medida em que, como dito, permite que uma das partes, no caso o Ministério Público, possa vir a se valer de outros procedimentos investigativos ou judiciais em curso, em que o réu não figura como parte, para produzir provas que posteriormente serão utilizadas contra ele na ação penal principal em andamento.

É, portanto, nesse contexto, em que não raramente é o próprio Ministério Público que decide unilateralmente qual fração de prova será disponibilizada à defesa no âmbito de uma determinada ação penal, por vezes, com a chancela do Poder Judiciário, que faz todo sentido questionar se o órgão ministerial tem o dever de descortinar para os acusados as provas essenciais às suas defesas que tiverem sido produzidas em outros procedimentos investigativos ou mesmo judiciais que lhes sejam estranhos. 

Nos Estados Unidos, fonte de inspiração para muitas das recentes alterações no processo penal brasileiro que tanto poder têm conferido para o Ministério Público, a Suprema Corte vem deixando claro há quase seis décadas, desde o julgamento do conhecido caso Brady v. Maryland[5], que o princípio constitucional do devido processo legal compele o Ministério Público a revelar para os réus as provas produzidas pelos agentes estatais de investigação que sejam especialmente relevantes para as suas defesas.

Nesse paradigmático caso, a Suprema Corte anulou a pena de morte imposta a um réu condenado por um crime de homicídio de primeiro grau, porque reconheceu que o Promotor de Justiça violou o seu direito constitucional ao devido processo legal quando não atendeu totalmente a um pedido da defesa de acesso a determinadas provas e deixou de revelar a existência de um depoimento extrajudicial de um corréu, no qual ele admitia ter sido o responsável direto por matar a vítima durante a execução de um roubo praticado pelos dois acusados. Na ocasião, a Suprema Corte assentou que “a supressão por parte do Ministério Público de prova favorável ao acusado, mediante solicitação, viola o devido processo legal quando a prova é material, seja à culpa, seja à pena, independentemente de boa fé ou má fé do Ministério Público[6].

É bem verdade que, no caso Brady v. Maryland, a Suprema Corte não deu maiores explicações sobre o que deveria ser compreendido como uma prova “material” para fins de aplicação do precedente então fixado, limitando-se a sugerir em algumas passagens do decisum que se deveria entender como tal aquela prova que, se disponibilizada ao réu, tenderia a absolvê-lo ou a reduzir a sua pena[7]. No entanto, ao longo dos anos, a Suprema Corte vem procurando desenvolver o conceito de “prova material” no âmbito de outros importantes julgados, de modo que se pode dizer que prevalece hoje na mais alta corte norte-americana a noção de que se estará diante de uma prova material quando “houver uma probabilidade razoável de que, se a prova tivesse sido revelada à defesa, o resultado do processo teria sido diferente”, isto é, “uma probabilidade suficiente para enfraquecer a confiança no resultado [do julgamento]” (United States v. Bagley)[8]. Adverte-se, porém, que “a questão não é se o réu teria provavelmente recebido um veredito diferente com as evidências [que lhe foram sonegadas], mas se, na sua ausência, ele recebeu um julgamento justo, entendido como um julgamento que resultou em um veredito digno de confiança” (Kyles v. Whitley)[9].

Na sequência de julgamentos que sucederam ao caso Brady v. Maryland, a Suprema Corte também firmou a compreensão de que o Ministério Público tem o dever constitucional de revelar a existência de provas materiais à defesa independentemente de prévio requerimento do réu nesse sentido[10], e mesmo quando essas provas não estão diretamente ligadas à formação do juízo da culpa ou da pena, mas se voltam, sim, a infirmar a credibilidade de uma testemunha importante para a tese acusatória[11]. No precedente Giglio v. United States, a Suprema Corte anulou uma condenação justamente porque verificou que o Ministério Público deixou de revelar à defesa que teria prometido a um coautor que não o denunciaria se ele concordasse em ser testemunha de acusação, em uma espécie de colaboração premiada informal[12].

Em suma, no âmbito do que se convencionou chamar de Doutrina Brady, a Suprema Corte dos Estados Unidos vem reconhecendo com firmeza que o princípio constitucional do devido processo legal obriga o Ministério Público a revelar para os réus a existência de provas que lhe são favoráveis e que, se sonegadas, podem vir a comprometer a realização de um julgamento justo.

Naturalmente, não há razão alguma para que não se reconheça uma obrigação similar no Brasil, sobretudo à luz do disposto no artigo 5º, incisos LIV e LV, da nossa Constituição Federal de 1988; mormente se consideramos que o Brasil, à semelhança de outros países[13], vem importando diversos institutos penais e processuais penais do direito norte-americano, que devem, assim, ao menos se fazer acompanhar das correspondentes garantias.

Como não poderia deixar de ser, os inúmeros poderes conquistados pelo Ministério Público nos últimos anos, que permitem que a instituição funcione hoje no processo penal, a um só tempo, como investigador, acusador e fiscal de lei, vieram acompanhados de responsabilidades e obrigações à altura, sendo a primeira delas impedir a todo custo que esse acúmulo de poderes desvirtue a essência do sistema acusatório brasileiro e os seus princípios mais elementares, dentre os quais se sobressaem a paridade de armas, o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.

A partir do momento em que esse acúmulo de funções por parte do Ministério Público começa a criar embaraços processuais às defesas até então inexistentes, inviabilizando, na prática, que os réus tomem conhecimento da íntegra dos elementos probatórios relacionados aos fatos criminosos que lhes estão sendo atribuídos, o mínimo que se deve esperar do Ministério Público, à luz dos referidos princípios constitucionais, é que ele passe a revelar para as defesas a existência de provas potencialmente relevantes e favoráveis aos réus, indispensáveis para a realização de um julgamento justo, que tiverem sido produzidas em procedimentos diversos, nos quais, repita-se, não raramente os réus teriam inclusive o direito de figurar como parte, mas não o fazem por uma decisão estratégica unilateral do próprio órgão acusatório.

Ora, se a função última do processo penal de um Estado Democrático de Direito é a promoção de um julgamento justo, como acreditamos ser, não se pode conceber que a nossa Constituição Federal exija do Ministério Público nada mais nada menos do que garantir que julgamentos justos, na prática, de fato, se materializem.

Por todo exposto, em resposta à indagação que vem norteando o presente artigo, parece-nos inescapável a conclusão de que, tal como ocorre nos Estados Unidos, aqui no Brasil também se deve extrair da Constituição Federal, em especial, dos princípios da ampla defesa, do contraditório, da paridade de armas e do devido processo legal, um dever do Ministério Público de revelar para os réus a existência de provas produzidas pelos agentes estatais que lhes sejam potencialmente benéficas e essenciais à sua defesa[14], para que eles possam vir a ser submetidos a um julgamento justo, cabendo naturalmente à doutrina e à jurisprudência envidar todos os esforços necessários à definição dos precisos contornos dessa obrigação constitucional, máxime enquanto não se dispuser de legislação ordinária voltada a regulamentar a matéria. 


[1] PRATES, Fernanda; BOTTINO, Thiago. “Megaprocessos e o exercício do direito de defesa: uma abordagem empírica”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 162, 2019. p. 145-170. P. 147.

[2] O PIC é previsto no artigo 1º da Resolução nº 181/2017, do CNMP, como procedimento investigatório criminal sumário e desburocratizado, que serve como preparação e embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal.

[3] A possibilidade de deflagração de ação penal com base em peças de informação também é regulamentada pela Resolução nº 181/2017, do CNMP, que, aliás, não prevê prazo máximo para a tramitação de tais peças, e ainda assenta não ser a instauração de procedimento investigativo criminal condição de procedibilidade ou pressuposto processual para o ajuizamento de ação penal.

[4] MALAN, Diogo. “Megaprocessos Criminais e Direito de Defesa”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 159, 2019, 45-67. Pg. 61.

[5] Brady v. Maryland, 373 U.S. 83, 95 (1963).

[6] Ibidem. Pg. 87. In verbis: “We hold that the suppression by the prosecution of evidence favorable to an accused upon request violates due process where the evidence is material either to guilt or to punishment, irrespective of the good faith or bad faith of the prosecution”.

[7] Ibidem. Pgs. 87-88.

[8] United States v. Bagley, 473 U.S. 667, 715 (1985), p. 682.

[9][9] Kyles v. Whitley, Warden 514 U.S. 419, 475 (1995), p. 434.

[10] United States v. Agurs, 427 U.S. 97, 122 (1976).

[11] Giglio v. United States, 405 U.S. 150, 155 (1972).

[12] Ibidem.

[13] MCLEOD, Allegra M. “Exporting US Criminal Justice”. Yale Law & Policy Review, 29, 2010, 83-164; LANGER, Máximo. “From legal transplants to legal translations: The globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure”. Harvard International Law Journal, 45: 1, 2004, 1-64.

[14]  Não parece levar a outra conclusão o entendimento expressado por Rogério Schietti Machado Cruz há quase duas décadas sobre a existência de um dever de objetividade na atuação do Ministério Público, enquanto custus legis, que o impeliria a produzir provas tanto contrárias quanto favoráveis aos acusados (CRUZ, Rogério Schietti Machado, Garantias Processuais nos Recursos Criminais, 1ª Ed., Editora Atlas, São Paulo,  2002)".

Autores

  • é advogado Criminalista, sócio do escritório Bidino & Tórtima Advogados, mestre em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Oxford e mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra.

  • é advogada criminalista; sócia do escritório Bidino & Tórtima Advogados; mestre em Direito Penal pela Universidade de Frankfurt am Main.

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