Estado, empresas e sociedade: diálogos (im)possíveis em tempos de Covid-19
9 de agosto de 2020, 6h06
Vivemos hoje um período em que todos necessitam dar e receber respostas rápidas. O cidadão, na sua casa, precisa decidir se sai ao supermercado ou se encomenda suas compras, o empresário, se investe no delivery e no home office, o Estado, quanto e por qual período, há de prestar assistência emergencial.
Nessas situações tão particulares, verificamos, em verdade, os três pilares da vida em comunidade, como a conhecemos hoje: Estado, empresas e sociedade. Cada um deles lidando com seus desafios em tempos de impossibilidades. Aqui, então, a atividade crítica do jurista deve se manifestar, não basta pensar na solução pontual, mas na estrutural.
Peter Häberle nos norteia pelo "pensamento de possibilidades", convidando-nos a repensar o Direito a partir de perspectivas inovadoras: "que possível solução seria viável para uma determinada situação?". Esse questionamento, no contexto apresentado, pode ganhar a seguinte feição: que relação entre Estado, empresas e sociedade seria viável em tempos de Covid-19?
Entre as várias respostas possíveis, aquela que aqui se coloca mostra alguns pontos comuns que perpassam o direito financeiro, os direitos humanos e o Direito Empresarial. São eles: a exigência de um Estado que use sua atividade financeira como garantidor e financiador de direitos; o direito fundamental à saúde e a manutenção da atividade econômica e da função social da empresa para a criação e manutenção de empregos.
Esse abalo multifacetário só pode ser compreendido, se reconhecida a dinâmica da vida contemporânea, remetendo-nos à preocupação sobre o "capital de giro", não entendido aqui como a pecúnia que permite a atividade empresarial "rodar", mas que faz a sociedade, como um todo, prosseguir. Trata-se, portanto, de compreendê-lo como o dinheiro que a sociedade e as empresas financiam o Estado, a fim de que este, por meio de sua atividade financeira seja capaz de realizar os objetivos constitucionais e atender às necessidades públicas.
Nessa relação simbiótica entre o Estado, as empresas e a sociedade, a preservação da condição humana, o objetivo de salvar vidas e o funcionamento efetivo das ações de saúde são cruciais. É preciso um ponto de equilíbrio que permita a colaboração transparente entre estes agentes, o que ainda não foi alcançado.
Ora, sabemos que a atividade financeira do Estado não se desenvolve numa abundância de ações individualizadas, pois deve buscar interseções mútuas no interesse público — isso porque "o lençol é curto" e o excesso de um lado pode levar a falta do outro. Por isso, não se pode tratar o tema do financiamento da saúde sem ter em conta que a matriz de regência que ali se construa se aplicará e afetará outras áreas igualmente revestidas de jusfundamentalidade. Hoje, porém, a saúde clama urgência, não podendo a atividade financeira servir de escusa para entraves políticos ou duelos de poder.
Sociedade e empresas financiam o Estado para a realização do direto fundamental à saúde, por meio de receitas; este, por sua vez, deve assegurar financeiramente ações e políticas de saúde, inclusive do SUS. A previsão dos recursos passa pelo planejamento orçamentário, com destaque ao orçamento mínimo social — embora se perceba a redução gradativa da destinação do dinheiro à saúde, como na PEC do Teto de Gastos.
A pandemia rompeu com o planejamento financeiro, pois exige medidas imediatas, urgentes e efetivas na saúde. No período de fevereiro/2020 até 28 de abril de 2020, foram editadas cerca de 35 medidas provisórias [1] que, de forma direta ou indireta, estão ligadas à crise sanitária. Os valores públicos foram direcionados para várias áreas, destinados, entre outros, à facilitação de acesso ao crédito e mitigação dos impactos econômicos (MP 958), à abertura de créditos extraordinários para o Ministério da Cidadania (MPs 957, 956 e 953), em defesa do direito ao trabalho, especificamente ao Contrato Verde e Amarelo (MP 955), suspensão do reajuste anual nos preços de medicamentos (MP 933) e a suspensão e prorrogação de prazo no pagamento de tributos (MP 952).
O destaque vai para a PEC 10-2020, chamada de PEC do Orçamento de Guerra, que criou um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento da calamidade pública nacional decorrente de pandemia internacional.
No entanto, os entraves não se limitaram à elaboração de normas, mas também bateu às portas do STF com destaque para a ADI 6341 que exige a revisão do modelo federativo sobre as transferências fiscais entre os entes federativos e para a ADI 6357 que flexibilizou as regras de responsabilidade fiscal em tempos de pandemia.
Neste contexto de (im)possibilidades, Estado e sociedade devem gastar com saúde e valorizar o controle fiscal por resultados, o que permite a aproximação entre o ser e o dever ser. O avolumar-se legislativo através das medidas provisórias, a máscara dos duelos fiscais federativos e a flexibilização dos limites existentes na LRF, acabam se colocando acima do que é início e fim de tudo isso, o ser humano. O controle de gastos não deve ser afastado, mas posto sob lume, para que suas finalidades sejam, de fato, alcançadas, e não maculadas.
Os empresários, por sua vez, também são levados ao exercício reflexivo, pois é necessário uma visão de empresa que não apenas exerça função social, mas que seja função social [2]. Entre iguais ou desiguais, os efeitos lotéricos assombrosos da crise sanitária afetam a todos, porque ligados estruturalmente. Em termos empresariais, alcançam, tanto os micro e pequenos empresários [3] quanto as macroempresas [4].
Essa crise, quiçá, é a maior prova do período de evolução do Direito Comercial, que nos noticia Paula Forgioni, o da empresa voltada para fora, para a realidade, para o mercado, o que faz do contrato, algo basilar para a economia. Daí buscar possibilidades de solução em alguns mecanismos judiciais e extrajudiciais, para permitir que, conquanto timidamente ou diante de novas tecnologias, evite-se o perecimento do negócio enquanto fato jurídico, e do "negócio" enquanto atividade lucrativa.
Ao comerciante caberá, portanto, ser diligente na busca de meios para sustentar seus negócios, seja dentro do próprio mercado, para garantir liquidez à recebíveis, optando, exemplificativamente, por operações de factoring ou, para evitar uma "enxurrada" de ações judiciais de cobrança, adotando a prática de negociação amigável com credores e devedores, de modo a estimular uma verdadeira cooperação entre contratantes durante este período, para que se sustentem relações de confiança quando a crise arrefecer — e ela vai arrefecer.
Ainda sob esta perspectiva, o Fundo de Aval às Micro e Pequenas Empresas se anuncia como possibilidade de auxílio, pelo qual os pequenos e médios empresários possam buscar fiança ou aval em operações de crédito com instituições financeiras. Esse mecanismo foi reforçado na atual crise, mediante a MPV 932, que destinou ao fundo, pelo menos, 50% do adicional de contribuição recebido com base no artigo 8º da Lei nº 8.029 de 1990 [5].
Sabemos, porém, embora menos custosas, nem sempre as transações extrajudiciais são possíveis, razão que deve manter o empresário alerta para a adoção de medidas judicias que resguardem a boa-fé e a paridade contratual, como o pleito revisional, ou, até mesmo, a formação de um quadro concursal, por meio da recuperação judicial, com o intuito de permitir o soerguimento e a preservação da atividade econômica.
Frente a isso, tem-se que, inobstante seus nefastos efeitos, a pandemia de Covid-19 nos convida — sem trocadilhos — a pensar as empresas em sua dinâmica, destacando seu papel social, de maneira que, como nos diz Fábio Nusdeo [6], possam efetivar e aperfeiçoar seus "resultados em termos demandados pela sociedade organizada politicamente".
A responsabilidade social, como outro pilar da vida em comum, mostra a capacidade de mobilização da sociedade civil, seja por pessoas físicas ou jurídicas, que estejam dispostas a doar dinheiro por mecanismos de economia solidária, através do mercado de doações ou por fundos filantrópicos. A prevenção, o cuidado e as ações em prol do combate e da erradicação do coronavirus não encontram fronteiras, pois, superar a pandemia é uma questão primordial de saúde e exige o compromisso de todos.
A atividade econômica é cíclica entre Estado, empresas e sociedade, o que torna o momento propício a pensar a "era pós-coronavírus", buscando possíveis saídas, para resguardar a dinamicidade do fluxo empresarial e dos serviços de saúde, desde medidas provisórias, que o Estado vem adotando, até soluções para o quadro preocupante apresentado pelo FMI: o da provável "pior recessão desde a Grande Depressão, superando a vista durante a crise financeira global, uma década atrás" [7].
Repensar o diálogo (im)possível entre Estado, empresas e sociedade é prioridade, porque todos nós somos partes do sistema único de saúde —público e privado. Afinal, a economia não pode estar acima da vida, mas deve ser usada em prol da vida. O gasto público — direto ou indireto — aliado ao planejamento fiscal em tempo de pandemia não pode se escusar apenas de elementos políticos, mas, para ser eficiente, deve ser legalmente responsável, no sentido de permitir a vida com qualidade, para maior número de pessoas. As necessidades e os desejos são infinitos e, às vezes, conflitantes, mas percebemos uma voz que grita de maneira uníssona neste momento: Saúde!
Referências bibliográficas
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BRASIL. Lei nº 13.775, de 20 de dezembro de 2018. Dispõe sobre a emissão de duplicata sob a forma escritural; altera a Lei nº 9.492, de 10 de setembro de 1997; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 21 dez. 2018. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20/4/2020.
BRASIL. Lei nº 5.474, de 18 de julho de 1968. Dispõe sobre as Duplicatas, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 19 jul. 1968. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20/4/2020.
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[1] A lista de medida provisória pode ser consultada neste link http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1/medidas-provisorias/2019-a-2022.
[2] COMPARATO, Fabio Konder. O poder de controle na Sociedade Anônima. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
[3] Estudo elaborado pelo Sebrae, com base em dados do ano 2017, indica que cerca de 98,5% do empresariado privado brasileiro é de micro e pequeno porte (Perfil das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. Brasília, 2018. Disponível em: <https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/ro/artigos/perfil-das-microempresas-e-empresas-de-pequeno-porte-2018,a2fb479851b33610VgnVCM1000004c00210aRCRD>. Acesso em: 10 abr. 2020).
[4] O cenário, portanto, atinge inclusive as redes empresariais marcadas pelo encadeamento produtivo (COMPARATO, Fabio Konder. O indispensável direito econômico. In: Ensaios e pareceres de direito empresarial. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 453-472).
[5] Segundo anúncios do Sebrae, a expectativa é de que até doze bilhões de reais sejam disponibilizados aos pequenos empresários: <http://www.agenciasebrae.com.br/sites/asn/uf/NA/medida-provisoria-reduz-em-50-a-aliquota-de-contribuicoes-ao-sistema-s,3e6050628e631710VgnVCM1000004c00210aRCRD>.
[6] NUSDEO, Fábio. Modesto Carvalhosa e o Direito Econômico: Um Resgate Necessário. Revista de Direito Mercantil, industrial, econômico e financeiro. São Paulo, nova série, ano LI, ns. 161/162, p. 9-16, jan./ago. 2012. p. 12.
[7] Estas são palavras utilizadas pela economista Gita Gopinath[7], conselheira do Fundo Monetário Internacional (FMI), na introdução do World Economic Outlook, edição de abril de 2020, elaborado no ínterim da pandemia do Covid-19 (“Coronavirus”).
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