Opinião

'Milk' e o direito da população LGBTQIA+ à sua identidade autopercebida

Autor

  • Yasminn Santana Santos

    é advogada Residente Jurídico na Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE/BA) na cidade de Vitória da Conquista pós-graduanda em Direito Processual Penal e Penal pela Estácio de Sá e pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Fael.

1 de agosto de 2020, 7h19

A discussão acerca dos direitos LGBTQIA+ deve ser pauta diária e incessante em uma nação que se considere regida, ao menos em tese, pelo Estado democrático de Direito, como é o caso do Brasil. Nesse sentido, referido debate torna-se ainda mais imperioso no cenário brasileiro, em virtude do tratamento ainda discriminatório e excludente que nossa sociedade confere à questão da diversidade sexual e de gênero.

Referida questão verteu-se em problemática social na medida em que ao assumir uma orientação sexual ou de gênero diversa dos padrões heteronormativos socialmente estabelecidos, as implicações são, em regra, a violação de direitos fundamentais como à vida, à saúde, à integridade e à igualdade, consubstanciada na violência simbólica, física, na discriminação e, consequentemente, na exclusão social dessa população considerada hipervulnerável.

Assim, em razão da cultura de desrespeito e violações sistemáticas aos direitos dessa minoria, o Brasil ainda figura como o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, tendo passado do 55º lugar de 2018 para o 68º em 2019 no ranking de países seguros para a população LGBT, de acordo com dados apresentados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

Não obstante essa realidade, importante relembrar que a luta desses grupos minoritários tem ecoado cada vez mais no Brasil, a despeito do recrudescimento de práticas criminosas, como a homofobia, sobretudo, atualmente, com a crise sanitária da Covid-19 em que foi constatado o aumento da violência contra a população LGBT.

Nesse contexto, percebe-se, por exemplo, que o Judiciário se tornou, em certa medida, mais atento às demandas e necessidades dessa minoria, passando a decidir de forma menos conservadora e em consonância com a dignidade da pessoa humana, com a igualdade material, ao direito de autodeterminação do sujeito, e, em última instância, ao próprio direito à felicidade, conforme propaga o ministro Celso de Mello.

Assim é que, no ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal, em sede da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, reconheceu, à luz da Constituição Federal de 1988, a união estável homoafetiva como entidade familiar.

Já em 2017 e 2018, o STJ e o STF, respectivamente, firmaram entendimento no sentido de que os transexuais têm direito à alteração do prenome e gênero no registro civil sem que seja necessária a imposição da cirurgia de redesignação sexual, como outrora era exigido.

Finalmente, em 13 de junho de 2019, o STF criminalizou a conduta de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero no âmbito do julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção 4733.

Portanto, a decisão da corte entendeu que a homofobia e a transfobia se enquadram como crime por força da Lei do Racismo (Lei 7.716/1989), por entender que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional.

Contudo, apesar dos esforços da sociedade civil organizada e de certa disposição do Judiciário em reconhecer tais pautas, o governo federal — daquele que evoca o famigerado torturador da ditadura, que exalta o regime nazista, bem como a Ku Klux Klan, entre outros absurdos inimagináveis — entendeu por "bem" extinguir quase todos os conselhos de direitos e de participação social, inclusive o Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), por meio do Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019, consoante Nota Pública do Conselho Nacional de Direitos Humanos (link abaixo com a íntegra da nota).

Conselhos esses, que são, em última análise, verdadeiro corolário da democracia participativa, permitindo o controle social dos cidadãos na gestão da coisa pública, o que consagra, indubitavelmente, a noção de Estado democrático de Direito.

Não à toa a Suprema Corte concedeu, no dia 13 de junho de 2019, medida liminar, em sede de ADI, no sentido de limitar o alcance do Decreto 9.759/2019, por considerar que a extinção genérica de conselhos criados por lei configura uma medida excessiva, bem como viola o princípio da vedação ao retrocesso social, na medida em que impede a participação popular.

Desse modo, é possível inferir que a intenção do governo federal ao criar óbice à participação popular na formulação das políticas públicas era de vulnerabilizar ainda mais a população LGBTQIA+.

E é nesse delicado e preocupante cenário social que o filme "Milk — A Voz da Igualdade", torna-se imprescindível de ser visto. A fim de revisitarmos vários conceitos, bem como adotarmos práticas que corroborem para o fortalecimento dos laços de solidariedade que devem sempre pautar as relações humanas na construção de uma sociedade livre, justa e igualitária.

Dito isso, o longa sugerido foi lançado em 20 de fevereiro de 2009, dirigido por Gus Van Sant, indicado a oito estatuetas do Oscar e protagonizado por ninguém menos que Sean Penn e estrelado pelos atores Josh Brolin, James Franco e Emile Hirsch. É a biografia de Harvey Milk (interpretada brilhantemente por Sean Penn, cuja atuação lhe rendeu o Oscar de melhor ator).

O contexto do filme é o início dos anos 70 e retrata o período da vida de Milk, em que este decide mudar-se de Nova York para São Francisco e morar com seu namorado Scott (James Franco), lá abrindo uma pequena loja de revelação fotográfica.

Até aqui nada de excepcional, uma vez que São Francisco àquela altura já era conhecida por albergar uma expressiva população LGBT. Contudo, as coisas mudam completamente quando Milk decide se candidatar, encabeçando várias mobilizações da luta LGBT, e é eleito para o Quadro de Supervisor (uma espécie de vereador) da cidade de São Francisco, no ano de 1977, tornando-se o primeiro homem declaradamente gay a assumir um cargo público dessa estatura nos EUA, e ao que tudo indica, no mundo.

O filme é magnífico, bastante representativo de uma época que é, infelizmente, muito atual; sem apelar para exageros, clichês, mostrando a vida como ela é. Permeada de lutas, resistências e de pessoas corajosas e encantadoras como Harvey Milk, que mesmo em meio ao caos, ao ódio, à discriminação, à tentativa de destruição de identidades e violação de direitos, mobilizam, inspiram, desafiam e até mesmo sacrificam projetos pessoais em nome da efetivação da igualdade, do direito ao reconhecimento da diversidade, alteridade e de ser, simplesmente, feliz.

Foi graças também a esse movimento liderado por Milk, que São Francisco é conhecida hoje como referência mundial para a luta e a história LGBT e sinônimo de diversidade sexual e de gênero.

Assim, o filme serve como reflexão, debate, e se necessário, revisão de práticas e posições em relação ao outro e o respeito à sua autonomia.

Importante asseverar que o movimento LGBTQIA+ não deseja mera tolerância. Percebe-se que a reivindicação dessa minoria é no sentido de ter direito a existir tal como sua identidade autopercebida e não como a sociedade pensa que é moralmente adequado, seja por convicções religiosas ou ideológicas heteronormativas e patriarcais.

Como diz a canção de Lulu, toda forma de amor é justa e com quem o outro se envolve amorosamente e/ou sexualmente, ou se não se envolve — no caso das pessoas assexuadas —, como se veste e se expressa perante o mundo não deve ser objeto de ingerência de ninguém.

O que deve ser objeto de preocupação e estudo científico é a tendência que a sociedade, em geral, tem de fiscalizar a vida alheia e tutelar comportamentos que em nada lesam ou violam a sua própria dignidade, integridade e vida.

Na verdade, o que viola tais valores são as práticas discriminatórias que tanto atentaram e ainda atentam aos direitos da população LGBTQIA+. Direitos esses que existem, independentemente da chancela do ora governo genocida, e que cabe a nós, minimamente, na qualidade de sujeitos que defendem de forma intransigente a promoção dos direitos humanos, propagá-los, efetivá-los em nossas pequenas práticas diárias e em nossas relações mais próximas.

 

Referências bibliográficas
https://anistia.org.br/28-de-junho-dia-orgulho-lgbti/#:~:text=28%20de%20junho%20%C3%A9%20o,em%20Nova%20Iorque%2C%20em%201969.

https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-de direitos-humanos-cndh/mocoes-e-notas/copy2_of_NotaPblicacontraaextinodoConselhoLGBT.pdf

https://antrabrasil.org/category/violencia/

https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2019-06/stf-limita-decreto-do-governo-que-extingue-conselhos-federais

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  • é advogada, Residente Jurídico na Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE/BA) na cidade de Vitória da Conquista, pós-graduanda em Direito Processual Penal e Penal pela Estácio de Sá e pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Fael.

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