Opinião

Os impactos da Covid-19 na realização das eleições municipais de 2020

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30 de abril de 2020, 6h03

A grave crise sanitária que aflige o mundo, provocada pelo avanço vertiginoso no número de diagnósticos por Covid-19, motivou a adoção de providências destinadas a reduzir a propagação da doença. Embora necessárias, restringem, em algum grau, a fruição de direitos fundamentais. Resultado da ponderação entre o direito à saúde e a liberdade de ir e vir, o isolamento social, por exemplo, vêm provocando consequências relevantes nos mais variados âmbitos jurídicos.

Em ano eleitoral, é natural que surjam preocupações com a viabilidade de organização dos pleitos municipais com segurança, especialmente porque há, na Constituição Federal, determinação expressa para que ocorram no primeiro domingo de outubro [1].

Considerando que o voto além de direito fundamental protegido por cláusula pétrea, insculpida no artigo 60, §4°, II, do texto constitucional é método de instrumentalização da democracia, o debate a respeito de eventual alteração do calendário eleitoral deve ser feito com prudência.

Em primeiro lugar, a extensão dos efeitos da pandemia sobre as eleições municipais só poderá ser aferida nos próximos meses. Difícil antecipar, por exemplo, de que maneira se dará a evolução no número de pessoas contaminadas, nem os impactos positivos das medidas de contenção do vírus.

A propósito, as convenções partidárias para a escolha de candidatos só se iniciam em 20 de julho e a campanha eleitoral, em 16 de agosto. Ainda é cedo, portanto, para que se verifique a imprescindibilidade do adiamento.

 Na Coreia do Sul, por exemplo, foi possível que se realizassem, no último dia 15, as eleições para a Assembleia Nacional. Adotaram-se diversas medidas para evitar o alastramento do vírus, como o uso obrigatório de máscaras e luvas, além do distanciamento entre os eleitores e checagem de temperatura nas seções eleitorais. A participação no pleito foi recorde 66.2%, a maior para uma eleição parlamentar em 18 anos [2].

Diante da impossibilidade de prever com precisão qual será o cenário em relação às contaminações pelo novo coronavírus no Brasil quando nos aproximarmos da data marcada para o pleito eleitoral, a discussão a respeito do adiamento parece precoce.

De qualquer modo, quando da análise das consequências da pandemia sobre as eleições, em momento oportuno, deve-se levar em consideração não só a data prevista na Constituição para o pleito, mas outras fases do processo eleitoral.          

É discutível a possibilidade de as convenções partidárias serem realizadas remotamente. Por outro lado, inconcebível supor que toda a campanha poderá ser adaptada, caso a necessidade de isolamento social se mantenha. Em hipótese que tal, relevante parte do eleitorado seria excluída do processo eleitoral.       

Garantir acesso remoto à campanha para toda a população e proibir aglomeração em regiões onde comícios e campanha "corpo a corpo" são práticas habituais, é impraticável.

Pode, portanto, haver necessidade de adiamento das eleições deste ano. Nesse caso, é importante definir qual o instrumento jurídico cabível para modificar a data do pleito. A meu ver, alteração dessa natureza somente poderia ocorrer por meio de edição de emenda constitucional, que modificasse o teor do artigo 29, inciso II. A obediência ao texto constitucional que prevê procedimento próprio para sua alteração, por emenda é característica indissociável ao Estado de Direito.

A competência para alterar a Constituição foi atribuída exclusivamente ao poder constituinte derivado, não sendo delegável mesmo diante da presente situação excepcional, ainda mais se tratando de matéria que interfere diretamente na instrumentalização do sistema democrático. Adiamento do pleito eleitoral por resolução de órgão do Poder Judiciário, por exemplo, seria, a meu juízo, inconstitucional.

A propósito, a periodicidade do voto, por ser cláusula pétrea, só pode ser eventualmente flexibilizada para garantir o exercício de outra cláusula pétrea no caso, o direito ao voto secreto, direto e universal.

Por essas razões, eventual postergação das eleições além de obrigatoriamente ter de ser instituída por emenda constitucional deve também se limitar ao tempo mínimo suficiente à sua viabilidade, caso se verifique, de fato, a impossibilidade no cumprimento das datas previstas pelo texto constitucional.

O adiamento das eleições municipais deste ano, mesmo que instituído por emenda constitucional, enfrentará, ainda, o óbice da exigência prevista no artigo 16 da Constituição Federal [3], que trata do princípio da anualidade eleitoral. Ao impedir que alterações no processo eleitoral se apliquem à eleição que ocorra antes de transcorrido um ano da vigência da norma que o modificou, o artigo 16 visa a impedir a deformação do processo eleitoral, mediante modificações casuísticas, que interfiram na igualdade do pleito.

Análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o princípio da anualidade eleitoral, no entanto, atrai a conclusão de que admissível a conclusão pela não incidência do referido princípio na hipótese de que ora se cuida.

No julgamento da ADI 354, em que foi determinada a aplicação imediata da Lei 8.037/90, relativa à apuração de votos, o ministro Sydney Sanches salientou que "o objetivo da norma constitucional foi evitar expedientes condenáveis que procuram alijar candidaturas e partidos, em favor de outros".

Na ocasião, o tribunal entendeu que o propósito do artigo 16 da Constituição Federal não era o de "impedir alterações louváveis na legislação eleitoral durante o ano de campanha", mas o de evitar alterações casuísticas e condenáveis do ponto de vista ético. A corte decidiu, então, que a lei então em análise, além de não "quebrar a ética do processo eleitoral", "esteve atenta à realidade nacional", determinando sua aplicação para as eleições daquele mesmo ano.

Muitos anos depois, alguns dos fundamentos mencionados se repetiram no julgamento da ADI 3.345, em que se discutia a aplicação da Resolução 21.702/2004/TSE, que definia critérios de proporcionalidade para fixação do número de vereadores nos municípios, para as eleições daquele ano.

Reiterou-se, na ocasião, que "a norma consubstanciada no artigo 16 da Constituição da República, que consagra o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se, em seu sentido teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com inovações abruptamente estabelecidas, a garantia básica de igual competitividade que deve sempre prevalecer nas disputas eleitorais".

O tribunal concluiu que a resolução editada pelo Tribunal Superior Eleitoral naquele mesmo ano "não rompeu a essencial igualdade de participação, no processo eleitoral, das agremiações partidárias e respectivos candidatos", além de não ter sido "editada nem motivada por qualquer propósito casuístico ou discriminatório", não violando, deste modo, o princípio insculpido no artigo 16 da Constituição Federal.

Seguindo esse entendimento, o tribunal, ao julgar a ADI 3.741, considerou que, diante da manutenção da igualdade de participação dos partidos políticos e dos respectivos candidatos no processo eleitoral, não ofenderia o princípio da anualidade eleitoral a aplicação da Lei 11.300/06 minirreforma eleitoral ao pleito daquele ano.

A posição do Supremo Tribunal Federal, portanto, é de que a teleologia do artigo 16 da Constituição Federal é a de impedir deformações no processo eleitoral — mediante alterações motivadas por razões casuísticas que interfiram na igualdade de participação dos partidos políticos e dos candidatos na eleição.

Diante da excepcionalidade do cenário de crise sanitária, conclui-se que, mantida a igualdade de participação dos partidos e candidatos na eleição, não viola o princípio da anterioridade eleitoral a edição de emenda constitucional com vistas ao adiamento das eleições municipais, até que se garanta a viabilidade do exercício do voto.

Vale mencionar, ainda que de passagem, que o contratempo seria agravado caso os efeitos da pandemia se estendam até o final de dezembro, impossibilitando a organização do pleito eleitoral ainda neste ano, o que geraria vacância nos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador.

Diante deste eventual cenário, a aplicação analógica do artigo 80 da Constituição Federal implicaria a assunção, por juízes de direito, dos cargos de prefeito, o que geraria diversos inconvenientes, das mais variadas ordens.

Medida que vem sendo cogitada, que é extremamente polêmica dada a falta de legitimidade que dela decorreria seria o prolongamento, pelo tempo mínimo necessário à realização das eleições, dos mandatos em curso, também por emenda constitucional.  

Uma outra solução, também aventada no Congresso Nacional, seria adiar para 2022 as eleições municipais, prorrogando-se, até tal ano, o mandato dos prefeitos, vice-prefeitos e vereadores. A ideia de unificação geral das eleições não é nova, já havendo sido objeto de diversas PECs.

Há, no entanto, relevante diferença entre os projetos. O debate acerca da alteração do calendário eleitoral, para que haja coincidência entre a data das eleições municipais e gerais é válido, embora, a meu ver, proponha solução equivocada.

Eventual unificação promoveria indesejável afastamento do cidadão das escolhas políticas, em razão do maior espaçamento no exercício do voto. A frequência do debate de questões políticas também diminuiria, prejudicando o amadurecimento político da sociedade [4].

Além disso, a enorme quantidade de candidaturas simultâneas possivelmente causaria desnecessária confusão no eleitor. Importantes assuntos locais, hoje cerne do debate político municipal, perderiam relevância diante da discussão de temas nacionais.

De qualquer modo, a discussão a respeito de eventual unificação de pleitos eleitorais é possível. O que não me parece razoável e que enseja imaginar tratar-se de oportunismo político, é sugerir o prolongamento, por longos dois anos, de mandatos já em curso.

O prazo dos mandatos foi definido pela Constituição e o eleitor, por ocasião do pleito eleitoral anterior, conferiu aos atuais mandatários um termo certo, de quatro anos. A periodicidade do voto, prevista em cláusula pétrea na Constituição Federal, a propósito, é vinculada ao tempo de mandato previamente estabelecido.

Entendo, portanto, que a solução apropriada à viabilização do pleito eleitoral municipal deverá ser discutida nos próximos meses, avaliando o impacto da pandemia. Caso seja necessário o adiamento, esse só poderá ser instituído por emenda constitucional, que deverá fazê-lo apenas pelo tempo mínimo necessário até que se viabilize o exercício do voto.

 


[1] Artigo 29  O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: II – eleição do Prefeito e do Vice-Prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores;

[2] https://oglobo.globo.com/mundo/a-frente-do-controle-da-covid-19-partido-governista-da-coreia-do-sul-tem-vitoria-arrasadora-em-eleicao-legislativa-24375222

[3] O Supremo Tribunal Federal decidiu, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.685/DF, que o princípio da anualidade eleitoral é oponível também ao exercício do poder constituinte derivado.

[4] Joelson Dias, Marilda Silveira e Daniel Falcão: "Unificação das eleições: Quem mais perde é o eleitor".

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