Opinião

Quarentena tributária: entre 'oportunismos' e 'oportunidades'

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21 de abril de 2020, 18h04

Vivenciar a crise mais profunda de, talvez, ao menos duas gerações é experiência dolorosa, mas, igualmente, gratificante. Dolorosa pelas evidentes dificuldades socioeconômicas que o Brasil e o mundo enfrentam e enfrentarão ainda por tempo incerto (porém, cuja certeza é apenas a de que, encerrado seu transcurso, trará nova normalidade, seja lá o que isso venha a querer dizer). Gratificante, por fundamentos menos óbvios — sobretudo a depender do que se analisa e do ponto de vista de quem o faz , mas que têm em comum a reflexão; o olhar interno. Olhar interno esse que busca a valorização da nossa casa, da nossa família e de nós mesmos, como indivíduos e como membros sociais. Introspecção essa que, por consequência, repercute na reflexão sobre qual tipo de empresas se espera integrar, como colaborador; sobre a qual tipo de Estado se deseja pertencer, como cidadão.

Neste cenário reflexivo, conclui-se com tranquilidade que, seja na "dor", seja na "gratificação", um dos elos mais sólidos que unem esses protagonistas dos nossos "presente turbulento e "futuro imprevisível" são os tributos. Ainda mais quando o Estado bem aprende a lição de Sir Winston Churchill, enxergando o empresário não como "o lobo a ser caçado" ou "a vaca a ser ordenhada", mas como "o cavalo que puxa a carroça". Ou quando o empresário — e toda a sociedade não titubeia na aplicação dos milenares ensinamentos de Aristóteles, para quem a finalidade primeira do Estado é levar segurança à vida social, regulamentando a convivência entre os homens e, em seguida, promovendo o bem-estar coletivo. Portanto, repita-se: protagonistas sociais unidos, sobretudo, pelos tributos, em especial em "hora de aperto" como a presente.

Mais a fundo na introspecção que a quarentena, "gentilmente", proporciona, se no ordinário o elo tributário entre Estado e empresas/ empresários necessita das empáticas lições de Churchill e Aristóteles, em períodos extraordinários como o atual em que um precisa ainda mais do outro é primordial que referido elo seja ainda mais enrijecido. E isso, em especial, para que não se confunda, de um lado ou de outro, "oportunidade" com "oportunismo".

Cada dia mais #emcasa e #comigomesmo, torna-se difícil, por exemplo, não refletir, recordando Churchill e ligando as luzes vermelhas do "oportunismo" quando se toma conhecimento de tratativas para discutir-se a instituição de empréstimo compulsório, a reforçar o caixa da União. Ou, pior, aumentar de imediato a carga tributária sem entrar no mérito de "legalidades", "anterioridades", "não confiscos" ou quaisquer outros princípios e regras constitucionais e legais , fazendo-se face à (evidente!) queda de arrecadação. Tudo isso justamente agora, "no olho do furacão". Dá vontade de ir para a janela, às 20h horário-padrão das "manifestações da quarentena" , e também gritar, a plenos (e saudáveis, graças a Deus) pulmões: "Sério mesmo?!" (cada um com o seu grito).

Por sua vez, mantendo-se acesas as luzes vermelhas, da mesma forma que acima, igualmente não é agradável receber sob o confinamento do lar a leitura de "teses" que discutem, por exemplo, como forma de combate ao onipresente coronavírus eventual isenção do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação (ITD) na doação de dinheiro (ou outros bens móveis) por particulares ou empresas. Ou ainda se as tais doações seriam contabilmente classificadas como despesas passíveis de dedutibilidade para fins de Imposto de Renda ou qualquer outra benesse fiscal. Ora, sem abandonar a fase introspetiva, reflete-se, conclui-se e retorna-se à janela, de mãos dadas a Aristóteles, para repetir o "sério mesmo?!"anterior, esperando eco.

Entretanto, se a reflexão deixa nítido o "oportunismo", da mesma maneira é combustível poderoso para evidenciar as luzes verdes do que é real "oportunidade", em especial na área jurídico-tributária.

"Oportunidade", por exemplo, é aproveitar este momento para, de fato, estudar a criação de mecanismos jurídicos de estímulo ao diálogo entre Fazenda e contribuintes. Para buscar a efetivação, no melhor sentido de "conversa pública", das transações previstas no artigo 171 do Código Tributário Nacional. Acordos, conciliações, mediações tributárias, que já são e serão ainda mais imprescindíveis quando a crise sanitária acabar, sobretudo para agilizar a resolução de lides tributárias e oxigenar o caixa de empresas e Estado. Tudo em estrito respeito aos cinco essenciais princípios que regem a Administração Pública (artigo 37 da Constituição), em particular a moralidade e a publicidade.

"Oportunidade" é, sim, fomentar o diálogo republicano entre contribuintes e Fazenda, mas sem se descuidar da busca pelo aperfeiçoamento de mecanismos de combate àqueles que, longe de quererem a conversa, fogem do cumprimento de suas obrigações tributárias. É aproveitar esse intervalo de nacional reflexão para ir além da decisão do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) nº 163.334 e trabalhar na consolidação das melhores propostas já em curso para o combate de devedores contumazes. Esses "contribuintes" competem de maneira desleal com os bons pagadores de tributos e privam o Estado e, por consequência, todos nós , sistemática e deliberadamente, de recursos essenciais para o implemento de ações sociais (como, por exemplo, o auxílio de que micro, pequenos e médios empresários, assim como trabalhadores informais, tanto necessitam agora). Se não é possível para o presente, que a reflexão da quarentena seja ao menos real oportunidade para se definir esses devedores em norma nacional e buscar deles, com precisão e agilidade, parte dos vitais recursos que os próximos meses e anos demandarão.

"Oportunidade" é não perder o bonde da história e, imediatamente após o término deste período de atenção quase que total às questões sanitárias, retomar com afinco o debate sobre a reforma tributária. O Brasil há anos precisa de sistema de cobrança de tributos mais justo, simples e eficiente. No entanto, a introspecção presente nos mostra com clareza que essa necessidade nunca foi tão extrema, diante da urgência em arrumar as casas de União, Estados, Municípios e empresas para os duros meses e anos que virão pela frente. Como a reforma terá de ser prioridade zero nesse trabalho de reorganização e busca pela (lendária!) retomada de crescimento econômico, é fundamental que se encontre tempo na presente agenda para, ao menos, avançar no debate da reforma. O olhar interno da quarentena não deixa mentir: sem esse planejamento, visando à melhor estratégia para aquilo que possa significar alguns passos além como um Sistema Tributário mais simples, eficiente e justo , o Brasil seguirá sendo o país do casuísmo e dos incêndios a serem apagados. É hora de isso mudar.

De toda maneira, estando "oportunidades" e "oportunismos" pretensamente definidos e exemplificados, quer por causa de suas gratificações, quer de suas dores, fato é que a reflexão trazida pela quarentena traz consigo a conclusão de que o momento é único a esta geração para definir, também no âmbito tributário, qual tipo de empresa os colaboradores querem integrar e a que tipo de Estado os cidadãos querem pertencer. Quem está no caminho da grandeza da "oportunidade" e quem vai no sentido da oposta pequeneza do "oportunismo".

Seja como for, diferenciar aos dois pode ser tão tênue quanto avaliar a quem seria justa veja: aqui o ponto é "justiça", e não "legalidade" – a aplicação de normas como as da Portaria Conjunta nº 12/2012 da Receita Federal do Brasil e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que, em tese, possibilita a postergação por 90 dias do pagamento de tributos federais em casos de calamidade pública. Trazendo isso para o contexto atual de Covid-19, tem-se o seguinte: se dá fôlego para empresas, mas retiram-se recursos do Estado; ou retiram-se recursos do Estado, mas se dá fôlego para as empresas. Ponderação tênue que, provavelmente, traria dificuldades dialéticas mesmo para Churchill e Aristóteles.

Assim, por todas essas "dores oportunistas" e "gratificações oportunas", fica o seguinte, querida Quarentena Tributária: espero que passe logo, mas, enquanto não, aproveito a oportunidade de refletir durante seu processo. E que empresas, Estado e sociedade façam esse mesmo proveito.

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